Seria eu também um indivíduo profundo tentando pronunciar nos intervalos do inteligível o inefável que mal se pode sustentar, como quem tenta apanhar estrelas com uma rede? Teria eu mãos delicadas ao escrever, capazes de dedilhar as saliências fugidias da coberta da alma? Ó, amigos, procedo eu do mesmo Espírito cuja fecundidade infinita torna cada gota pesada demais de sentido, sempre prestes a se espatifar no fundo onde nos confinamos?
Não, é claro que não.
Porque é isto que descobri, ainda ontem e quase todo o dia, que: apesar de sofisticado, fino e educado, muito ético mesmo, com espiritualidade ok (que quer dizer espiritualidade a caminho, com os cinco solas e tudo), ouvindo Rachmaninov e me emocionando, eu não sou profundo. O indivíduo profundo é emocionalmente complexo demais pra mim.
Enquanto eu acho bebês fofinhos, mulher bonita e tenho dó de criança na rua, o indivíduo profundo sofre: sofre porque os bebês não são suficientemente amados, porque as mulheres são cidadãos de segunda classe, porque as crianças, de rua ou não, se tornarão adultos cínicos e materialistas, mas também – e principalmente – porque a miséria é como agulhas penetrando em seu coração sangrento e o afeto é senão uma ilusão que se alimenta do clarão evanescente da alma torturada do poeta sufocado dentro de mim.
Ter uma alma torturada e sofrer apaixonadamente sua inadequação no mundo têm nome: chama-se adolescência. Evocar a adolescência é quase como apelar a um absoluto capaz de encerrar a discussão na hora; as pessoas dizem “ah, sim, é por causa da adolescência”. Pois na minha época esse negócio de adolescência não existia, nós usávamos sapatos com solado de madeira, as meninas casavam aos quatorze anos e poligamia era incentivada.
A profundidade é como a torneira da pia da cozinha pingando sobre três pratos amontoados um sobre o outro num equilíbrio perfeitamente instável, tec, tec, tec, a noite inteira, e você com preguiça de levantar no frio e ter que pisar no chão gelado só pra apertar bem a porcaria que deixaram mal rosqueada. O indivíduo profundo está condenado a vagar pelo mundo com um coração vasto demais e por isso deixando por aí uma melequinha como se fosse um caramujo. Isso porque o eu profundo não é nada higiênico; não pode colocar a mão e depois coçar o olho, porque se corre o risco de perder as vistas.
O sentimento profundo de não querer ser um clichê gigantesco tatua na testa das pessoas como elas são tão oblíquas ao sentir e pensar que perguntar pra elas onde é que fica uma rua pode te conduzir à viagem trascendental aos subitamente não fictícios nove círculos do Inferno, mas sem Virgílio com pinta de Classic Hollywood actor by Gustave Doré.
Mas você realmente sabe que é profundo quando para de falar de pessoas com nomes de verdade e endereço físico e se pega falando do SER HUMANO.
O SER HUMANO SOFRE é também arte.
Ler Crepúsculo aos 16, 17 anos é gracinha em meninas, acho que porque eu sou muito condescendente com as menininhas, que me lembram a filha que eu nunca tive. Mas ser emo é como transformar a profundidade num desses chaveirinhos que a molecada carrega na mochila com a foto do Bush ou da suástica cortada no meio, porque a molecada é contra o imperialismo militarista e o nazismo. Por isso, a gente que é cínico e materialista, com a boca cheia de Coca e pipoca com manteiga de golfinho do Cinemark, a gente tem que cuidar da molecada, tão perdida nesse mundo e dentro de si. Amém.
E não percam o próximo post, no qual falarei sobre crianças de colo forçadas a usar dreads.
Desculpe a intromissão, mas você tem quantos anos?
ResponderExcluirE, poxa, lembrar da melequinha do caramujo ao escrever sobre pessoas profundas é... sei lá... genial. Não existe figura que representa melhor.
Muito novo para pensar nas filhas que nunca teve, não?
ResponderExcluirDeixe estar que muitas mulheres quererão engravidar de ti.