Tenho uma opinião sobre gente normal. Gente normal é ruim. Não biologicamente, como se genética e determinismo entrassem na história. A princípio eu ia dizer que era uma escolha. Que era moral. Mas seria supor que as pessoas andam pensando mais do que realmente pensam. Que ingênuo.
Aí eu comprei um sorvete e, enquanto tomava, vi que normalidade tem a ver com higiene. Porque o sorvete escorria todo pelo meu braço, que eu era obrigado a lamper desde o cotovelo.
Daí que ser normal é uma questão de limpeza. Você precisa estar limpo. Sem meleca nem mistura. E sujar-se é muito fácil. Envolver-se suja. Trocas em geral. Mesmo de ideias, que podem subverter convicções antigas. Imagine de emoções, que talvez te inutilizem pra sempre.
E gente limpinha é só gente esquisita disfarçando. Porque gente normal é absolutamente limpa. Pura. Por isso é que é ruim. Bondade suja. Bondade despenteia. Tanta coisa nessa vida despenteia. Beethoven despenteia. E muito. Mas bondade mais. Porque bondade tem a ver com curvar-se e deixar a nuca à mostra. Gente normal anda ereta. E nunca corre. Correr é indigno. Fosse possível, gente normal nem comeria. Quem come é obviamente inferior a quem não come. E quem está de pé, a quem está sentado. Gente normal prefere ficar sentada.
E você precisar ter certeza. Dúvidas são como manchas no cérebro. Corre-se o risco de se aprofundar alguma coisa. Aprofundar-se é como enfiar a mão no ralo do banheiro pra tirar tufos de cabelo acumulados ao longo de semanas e procedentes de várias partes do corpo humano. Gente normal já é aos 20 o que vai ser pelo resto da vida. Gente normal fica pronta rápido. É muito prático ser normal.
E gente normal não incomoda. Não incomoda porque não se importa. Importar-se é anti-higiênico. Ser normal é não pôr a mão. O problema em gente esquisita é que elas vivem colocando a mão em tudo, inclusive onde não se deve. Pensar muito, por exemplo. É como pegar em corrimão de metrô e depois colocar a mão na boca. Nojo.
Gripe suína não se espalha em ambiente cheio de gente normal. Quem transmite doença é gente esquisita. Claro. Gente esquisita não lava as mãos depois de ir ao banheiro. Anda com as unhas pretas. E despenteada. Por mais limpa que possa estar, gente esquisita sempre está despenteada. Tem a ver com a gravidade. A natureza querendo jogar gente esquisita pra fora do planeta Terra. A natureza é bem normal.
Por tudo isso é que o meu filho vai ser normal. E de proveta. Ou clonado. Senão, suja.
Acho que ando bem porcalhona, ultimamente ;)
ResponderExcluirTem um filme no HSBC, "A Onda". A estética é televisiva, mas a ideia... bem, vá ver, qualquer hora.
Sempre a gostar do Fomos ao Cinema.
Olá, camarada fundamentalista.
ResponderExcluirSou amiga da Milly, e ela me deu pra ler esse seu texto. Como resposta-comentário, te mando este texto, que talvez já conheça:
Cântico negro
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
(José Régio)