segunda-feira, 16 de junho de 2008

A Madama e o Torneiro Mecânico

Para Pauline.

Porque, quando eu for humilhado e martirizado pela causa da justiça, que não seja por alguém de quem, em agonia excruciante e entre alucinações, eu me lembre como uma Cruella de Vil com chapinha falando como um oficial da SS miguxo: “Queridinhos, vocês agora vão todos pra câmara de gás sem dar um piu. Um piu! Ouviram?”

Dentre as fábulas modernas, nenhuma é tão rica em ensinamentos como a arquifamosa “A Madama e o Torneiro Mecânico”, adaptação da fábula de Esopo “A Serpente e a Anta”.

Contam que fazia muitos anos que a Dona Anta estava, como se diz, pela Caixa, graças à ajudinha de um médico truta seu. Mas a sorte dela mudou de uma hora pra outra quando responsabilizaram pela perícia outro médico, que, percebendo o esquema, queria fazê-la voltar ao batente. Muito brava, Dona Anta partiu pra cima, mas, enganchando o chinelo de dedo na cadeira, bateu com a boca na quina da mesa e só não foi presa porque começou a chorar que nem uma menininha quando os seguranças lhe travaram as patas.

Esopo.

Vinha andando muito desconsolada pela rua, enquanto tirava o gesso que já não servia pra nada, quando viu entrando numa clínica de estética a Dona Serpente, acompanhada de um segurança de 1,90 e 140 quilos, tão chique ela que até parecia atriz da Globo, e eu acho que era mesmo. Dona Serpente, sem hora marcada, chegou aos berros porque uma mancha que ela tinha em cima da cabeça dela de serpente não tinha saído depois da última limpeza de pele. Apesar da médica lhe explicar que aquela mancha não sairia porque era da espécie de serpente que ela era, Dona Serpente já começava o discursinho do “Você sabe com quem está falando?”, que era exatamente a questão.

Do lado de fora, espreitando, Dona Anta ouvia tudo com atenção. Depois de empurrar uma atendente que a quis conduzir à sala de exames, Dona Serpente saiu possessa, porta afora, seguida pelo segurança. Na calçada, no entanto, sendo abordada pela Dona Anta, que pedia só “um minutinho da vossa atenção, madama”, mandou que o Waldinei, o segurança, entrasse em ação, o que ele fez de pronto, dando uma cacetada na cabeça da Dona Anta debaixo do boné encardido de partido político. Waldinei ainda achou por bem dar-lhe alguns chutes no estômago, já que não tinha ninguém olhando, enquanto Dona Serpente entrava no carro.

Em entrevista ao A Tarde é Sua, da RedeTV, Narcisa Saldanha Tamborindeguy disse jamais ter ouvido falar na fábula da Madama e do Torneiro Mecânico.

Mas Dona Anta era persistente quando estava em jogo a possibilidade de não ter de trabalhar por mais pelo menos uns três anos ou até mais, se ela conseguisse arrancar daquela perua (Dona Anta não era boa de zoologia) uns 500 reais, dinheiro mais do que suficiente pra comprar carvão pras churrascadas quinzenais com carne podre que o governo costumava enterrar nas proximidades da floresta, porque a cerveja era o Diógenes que providenciava. Por isso, com o resto de forças que tinha, gritou que havia um jeito de tirar aquela mancha da cabeça da Dona Serpente, mesmo ela sendo de uma espécie de serpente com mancha na cabeça. “Fala logo”, disse a serpente com aquela voz enjoadinha de serpente, fazendo sinal pro Waldinei parar de chutar a Dona Anta.

Limpando o sangue da boca, o mamífero disse: “Ólia, madama, s’a çinhora kinzé, eu poçu tira eza manxa da sua cabessa”. E explicou que era só cortar a cabeça da Dona Serpente que, por ela ser uma serpente, cresceria de novo. Dona Serpente, que, por causa das sessões contínuas de bronzeamento artificial, andava menos astuta do que de costume, achou a explicação bem convincente.

Tirou 500 conto da carteira de couro de anta e jogou pra Dona Anta, cujos olhos brilharam, apesar do inchaço decorrente das pancadas começar a lhe deformar a fisionomia de anta. Querendo por isso mesmo se vingar, Dona Anta, muito mau-agradecida, disse assim para Dona Serpente: “S’a madama qinze, eu messmu cortou pra sinhoura”. Fazendo uma cara enorme de nojo, Dona Serpente já ia recusando, quando viu refletida no retrovisor do carro aquela mancha horrorosa em sua cabeça. Apavorada, ela concordou com que Dona Anta mesma fizesse o serviço com aquelas patas que não pareciam ver água há mais de ano, contanto que fosse imediatamente.

Torno mecânico.


Foram, então, as duas e o Waldinei pra rua de trás da clínica de estética, onde havia um terreno baldio. “Vai doer?”, perguntou Dona Serpente. “Nada”, respondeu Dona Anta, que já levantava bem alto uma faca que ela achou no meio do lixo, mas que ela disse que tinha trazido de casa porque sempre costumava fazer isso de cortar cabeça de serpente com mancha. E de um só golpe decepou a cabeça de Dona Serpente. Voltando-se ao Waldinei, Dona Anta pediu que ele levasse a patroa e a cabeça para casa e esperasse pelo menos umas 24 horas até que começasse a brotar a nova cabeça, e deu o fora em seguida.

Passadas 24 horas, não cresceu porcaria de cabeça nova nenhuma. Mas, em compensação, a mancha na cabeça já cinzenta da Dona Serpente estava muito mais clara do que antes, ainda que não tivesse sumido. Três dias depois, que foi quando o Seu Serpente voltou da “reunião de negócios”, encontrou Waldinei inconsolável com a cabeça fedorenta da patroa no colo. Seu Serpente chamou então a polícia, que saiu imediatamente em busca da Dona Anta, que foi facilmente localizada, dando uma churrascada olímpica na floresta do Heliópolis. Na mata fechada, o pagodão e o barulhinho de havaianas sendo arrastadas contra o cimento facilitaram o serviço da polícia, que desconfiou do fato daquele churrasco ser tão opulento e não contar apenas com carne podre do governo. Interrogou um por um e chegou ao nome da Dona Anta, que foi pra delegacia apanhando no camburão.

Moral da história: as pessoas são caricaturas de si mesmas. Se você entrar numa clínica de estética, vai encontrar pelo menos uma Soraya Montenegro e uma Paola Bracho fazendo limpeza de pele. Se der um pulo no Heliópolis, vai ver pobres em lajes fazendo churrasco e ouvindo a Dança do Créo. E é tudo gente perversa.


Fim

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