Eu tinha um amiguinho imaginário que, por uma confusão terrível de que só mesmo o inconsciente by Freud da gente é capaz, era a cara do Adorno, o Teodoro, aquele da Escola de Frankfurt, internato pra onde os alemães do entreguerras mandavam os filhos, que saíam de lá aos 17 doutorados em Filosofia, mas magrinhos, porque proibiam as crianças de comer chucrute e beber cerveja. Um dos pilares do espírito do colégio era a erradicação total do sorriso no mundo, tão fundamental que era a marca registrada indisfarçável do pensamento e da cara de qualquer um de seus ex-alunos.
A luz.
("My fingertips are holding onto the cracks in our foundation...")
Sintomaticamente, o Adanoninho, como o apelidei, só me aparecia quando eu começava a flertar, mais do que o normal, com o mainstream. Aliás, só de tocar no assunto, pipocava um vultozinho dele aqui e ali, no canto do meu olho, mesmo entre os meus colegas superalternativos, totalmente endossados em seu estilo de vida pelo velho espírito carrancudo da Teoria Crítica. Ultimamente, o nome do flerte é Kate Nash, bijuzinho irlandês que já figurou aqui como Tetéia da Semana, escolha luminosa do Camarada Progressista.
A coisa melhor do mundo é saber que se está sendo enganado, mas deixar, porque é gostoso. Posso te enumerar pelo menos uns três vícios universais que não são senão variações disso: arte, música pop e amor. Agora, posso te citar verbatim a passagem da Minima Moralia em que o Adorno himself condena esse prazer leviano e irresponsável como o riso que acoberta o choro e ranger de dentes da multidão. Pois absolutamente toda vez que, diante da Farsa, você dá de ombros, muito jovialmente, e morde um Big Mac, cai uma bigorna bem grandona na cabeça de um chinezinho oprimido pela ordem do Trabalho.
Prevendo o tom zombeteiro de posts como este, é que Adorno, em vez de reencarnar – gesto crítico dialético contrário a seu materialismo em vida –, totalmente organicamente perpetuou-se em brotos alucinatórios (e não ectoplasmáticos!) na cabeça de jovens universitários incautos como eu, sob a forma de amiguinhos imaginários como o Adanoninho, para me lembrar que até isto é vaidade e há de passar.
As trevas.
Só que outro dia, depois de baixar, quer dizer, comprar um Compact Disc original de Made of Bricks e pagar em dinheiro no caixa da Fnac Paulista, pena que eu perdi a notinha, senão eu te mostrava, passei pro meu mp3 player pra avaliar a sonoridade da artista em outras faixas que não seu hit Foundations, teste que consiste em quanto uma música consegue me fazer sorrir em público esquisitamente, logo pela manhã, apesar do ônibus e metrô lotados que me levam prum serviço que paga mal. Estava mais do que aprovada a menininha.
Só sei que quando, em Skeleton Song, Kate Nash diz que vai acabar com a raça do seu amiguinho esqueleto, no meio de uma gigantesca barulheira, on that delicious British accent, o Adanoninho deu sinal, desceu do ônibus e se enfiou num boteco fedido, cheio da mais renitente e ascética resistência ao glamour hollywoodiano, já que não podia haver na terra cenário mais diverso daquele de Casablanca, em que Bogart amarguradamente mamado ouvia As time goes by. Casablanca, que ninguém, a não ser o Adanoninho, notara que endeusa um bebum agindo que nem fosse sóbrio. Como todos os filmes com o Bogart, você diz maldosamente, mas façamos que não vimos, né?
Desde então, não houve mais aparições do Adanoninho, que antes eram quase diárias. Isso foi há mais de uma semana.
Epílogo – New about me: lia Adorno e ouvia Kate Nash. Im-pu-ne-men-te.
Ô, sim, isso tudo foi um prólogo, porque de Kate Nash mesmo eu não falei nada, reme(n)dando o mal no post seguinte, pois não.
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