Trago aqui a segunda parte do texto "Código Hays: 40 anos sem você", imaginando como ficariam filmes contemporâneos se o Código Hays ainda fosse vigente e a pré-censura ainda existisse em Hollywood. As palavras são escassas, mas o sentimento é abundante. Hã?
PULP FICTION
Filmes protagonizados por bandidos não eram permitidos, já que afrontavam frontalmente a moral e os bons costumes. Isso fez James Cagney protagonizar até musicais nos anos 40, ele que era o rei dos filmes de gangsters na era pré-código. Por isso, nada de assassinos protagonizando o filme. Pulp Fiction ia virar um noir épico daqueles, já que o gênero esfumaçado era o mais próximo dos filmes de gangsters que conseguiu-se produzir na Classic Hollywood. Vicent Vega e Marsellus iam virar dois detetives parrudos e pervos, investigando o submundo das drogas em Los Angeles e citando passagens fictícias da bíblia (aparentemente Tarantino se acha tanto que resolveu criar seu próprio verso bíblico)enquanto mandavam os bandidos para aonde jamais deveriam ter saído. A Mia Wallace ia deixar de ser uma mob girl junkie e ia virar uma femme fatalle daquelas, atentando Vega e subvertendo a conduta do nosso herói. As referências à cultura pop, massagens e quarteirões com queijo continuariam lá, já que não seriam necessariamente interceptadas pelo código, por não atentarem contra muita coisa além de direitos de imagem e reputações de casas de bem. E o boxeador do Bruce Willis? Iria se redimir como no filme, mas sem tanta violência, ia ser uma daquelas retomadas de consciência súbitas e baratas que tanto assombravam os roteiristas da era do código. Quanto aos palavrões, esses teriam de sumir. E a cena da dança seria considerada lasciva demais, então em vez do Chucky Berry, Tarantino teria de usar uma música mais lenta e suave. Quem sabe um Wilco, ou um Yo La Tengo? Vega e Wallace dançando ao som de "I'm Trying To Break Your Heart". Sim, ia ser exatamente assim. Não sei se seria necessariamente melhor, mas daria um bom caldo.

É das camaradagens!
MATRIX
O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN
Como o Ang Lee não tem a malandragem do Alfred Hitchcock, teríamos sérios problemas. No final das contas, ele teria de colocar uma peruca no Jake Gylenhaal (cujo personagem era obviamente o passivo no filme) alá Quanto Mais Quente Melhor e fazer o filme com um cowboy e uma cowgirl trabalhando juntos na montanha e se apaixonando. Adultério não era proibido pelos censores, então ele poderia focar o choque e o segredo do filme nisso. Mas ele poderia espalhar alguns pequenos protestos. Tipo, dar um nome masculino para a cowgirl, que nem naquele filme chato do início dos anos 90, Três Formas de Amar, ou realçar a estranha preferência da personagem em fazer xixi de pé (obviamente algo feito somente por meio dos diálogos, já que os censores não iriam permitir mostrar ninguém fazendo o número 1 na frente da câmera). Ia ser um lindo diálogo. Há, última coisa: iam proibir o Heath Ledger. Atores deprimidos e potencialmente suicidas eram um problema, vide Montgomery Clift. Um mais positivista - tipo o Ben Affleck-seria o indicado para alegrar os censores. Ia ficar bem legal.
Cadê a peruca? Traz a peruca agora!
A violência era mais aceita em faroestes na época do Código, já que o contexto histórico dos mesmos aliviava as proibições, e cenas de brigas homéricas eram comuns nos filmes de John Ford e Howard Hanks, por exemplo. Obviamente que eram brigas estilizadas e desprovidas de sangue, mas ainda sim eram brigas. Por isso, nada de contexto urbano pós-moderno: Clube da Luta teria de ser um western mesmo. Edward Norton seria um tímido dono de um saloon, sempre pronto para aconselhar e ajudar os cachaçados frequentadores de seu barzinho (o que explicaria a presença do Meat Loaf). Numa típica viagem de trem acabaria conhecendoc um cowboy sangue ruim e destemido chamado Tyler Durden, que o levaria para uma viagem sem volta para o mundo da subversão sulista. Criariam juntos então um Clube da Luta texano, e logo estariam formando uma comunidade fascista de foras-da-lei em choque com as tropas federais. Ao invés do discurso Geração X do filme original, Durden diria as seguintes palavras: "nós somos a escória. Nós somos as párias da Guerra Civil. Nós somos os soldados confederados yankees esquecidos, e nós estamos muito putos!". A reviravolta final seria preservada, já que o uso de transtornos psicológicos não era proibido na era do Código (vide Uma Rua Chamada Pecado). Quem viu o Brad Pitt como Jesse James ia adorar. Seria muito belo.
É claro que você se gosta. Quem não gostaria?
Hannibal não poderia mais ser canibal. Nem uma simples menção nominal do fato poderia ser feita. Até o nome Hannibal teria de ser trocado, pois remeteria diretamente à obra literária. Por isso, Jonathan Demme teria de trabalhar firme nos traços subtextuais do roteiro. Ao invés de Hannibal, poderia colocar um nome tipo "Humanizer" ou "Maneater'. Talvez um diálogo na base do "você já se perguntou como ficaria na base da pimenta do reino?" aqui e um "hoje você está no ponto" ali, entre o Anthony Hopkins e a Jodie Foster, pudesse fornecer mais pistas. E, obviamente, os crimes de Hanniball e do serial killer seriam apenas mencionados, jamais mostrados in loco. Por isso, a cada dois segundos do filme algum personagem teria de repetir que "o Hannibal é mal, pega um, pega geral" e "ele é muito mal mesmo, olhou torto morreu", para delinear toda a maldade do nosso psiquiatra canibal favorito. E a Jodie Foster? Sem problemas, seu jeitão "smart girl" era bem aceito na época do Código, vide Jean Arthur e outras. Mas ia ter de cuidar da imagem, ficar um pouquinho mais feminina, ter um namorado e tudo mais. Uma investigadora solteira e de voz grossa? Sapatão!
O final teria de ser mudado. O detetive descobriria a trapaça antes do Kevin Spacey se mandar. Ai ele falaria: "Nossa, você foi muito esperto, me manipulou e quase conseguiu ser solto e fugir, o que me faria ser a piada da corporação por anos. Mas como você sabe, a polícia e o sistema funcionam, o bem sempre vencerá o mal, e eu acabei conseguindo descobrir a tempo a verdade. Por isso, reconheço a sua inteligência, mas você precisa admitir que não é páreo para o sistema penal norte-americano. E que o bem é mais forte que o mal. E que a América não é lugar para meliantes subversivos, e sim para famílias felizes, trabalhadores contentes, donas-de-casa exultantes e crianças felizes como pinto no lixo. Uma bela propaganda de pasta de dente, essa é a América, Verbal Kint. E viva a América."
INDEPENDENCE DAY
TITANIC
Kate Winslet não poderia ficar pelada. Nudez era palavrão para os censores, mas nudez de gordinhas seria um crime indesculpável. Diriam os censores que " se eu quissesse ver gordura, ia no açougue da esquina, pombas!". De resto, sem problemas, se bem que um ou outro membro dos censores poderia implicar com o Di Caprio. " Esse ai parece que gosta de morder a fronha e jogar água pra fora da bacia...". Mas ia ficar por isso mesmo, já que em todos os filmes lançados com o Montgomery Clift eles falavam a mesma coisa.

"On a dark desert highway, cool wind in my hair"