sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Wim Wenders é cachaceiro, bebum e ninguém dá mais a mínima para os seus filmes. Bu!

Aê, cambada. Depois de semanas no esculacho, estou de volta. O negócio é o seguinte: estou puto da vida com a vinda do alemão cachaceiro e ex-diretor de obras-primas Wim Wenders. Aproveitando a lembrança do Moderado (de volta do mundo dos mortos, depois de muita chinelagem) ai embaixo, gostaria de mandar o Wenders ir enganar trouxas em outra freguesia. Já não bastasse aquelas bandas gringas mastodônticas vindo enganar os otários nessa terra na qual tudo de planta e tudo se dá (opa!) em nome de um punhado de dólares a mais (copyright Sergio Leone), agora diretores falidos também resolveram entrar na lista e nos visitar no feio crepúsculo de suas anteriormente brilhantes carreiras. Primeiro foi o David Lynch pouco tempo atrás, agora é o Wenders. Sério, alguém deu a mínima para os últimos 10 anos da carreira dele? Reciclando idéias, temáticas e personagens, Wenders chegou a tal ponto de irrelevância artística que mesmo veículos conceituados acabam nem noticiando o lançamento dos seus últimos filmes. Wenders veio apresentar na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo o seu mais novo engodo, Palermo Shooting, seu milésimo road movie, esse passado na Itália. Sério.

Garotas que são chegadas num coroa gringo: tremei! Mas um aviso: dizem que o alemão gosta mesmo é de morder a fronha. Mas não se intimidem por isso não.


A única mudança que o alemão pau d'água faz nos seus filmes são as localizações mesmo, pois roteiro mesmo na vida ele escreveu dois (um dos seus road movies, e o outro dos seus filmes de anjos), e os recicla ad infinitum desde então. Lógico que ele realizou belíssimos filmes e outros tantos competentes, mas a fórmula esgotou faz tempo. Toda a manada dos descolados e pseudo-intelectuais se deslocou até a Mostra para verem, serem vistos, aparecer e lamber os ossos jogados pelo alemão, nas entrevistas coletivas e nas sessões (o cidadão assistiu vários filmes na Mostra). Para essa turma de infelizes que infesta os Espaços Unibancos e Cines Bombrils da vida, eu dou é uma bela duma banana. Vou pegar a minha camiseta do Braddock (Chuck Norris, seus tontos) e desfilar nas áreas da Mostra lá na Paulista. Quero ver quem vai ser macho de tirar uma com a minha cara. Já chamo pra porrada! Ah, eu tô maluco! Porrada na Mostra, é pra quem pode, não pra quem quer. No mais, beijos para todos, e eu ainda vou roubar a sua namorada (mulher não manja nada de cinema mesmo, só vão pra acompanhar e falar "que lindo, amor!) enquanto você estiver chorando vendo a última patetaiada do Wenders. Cornão!


Os dois bastiões da Folha de São Paulo: apoiar a cultura e o mau jornalismo


Obs 1: a Mostra dedicou um espaço para Wenders exibir os seus filmes favoritos. Como ele indicou 2 filmes do Yasurijo Ozu, foi uma rara oportunidade para os fãs do cineasta japonês verem um de seus filmes na telona. Mas se fosse assim, que Wenders tivesse mandado lá da gringa a lista por e-mail para os organizadores e eles os exibissem então. Com muita caipirinha, feijoada, paio, todas as papagaiadas que o povo aqui dos trópicos adora.

Obs 2: numa visita a Porto Alegre (recentemente, em agosto) para participar de uma palestra, Wenders protagonizou um momento de hilariante constrangimento. Um timeco de futebol de lá (Interegional, se não me engano) resolveu "homenageá-lo" com uma camisa com o seu nome nas costas e a numeração 10. Wenders foi obrigado a segurar o presente de grego nas mãos, e dar os costumeiros sorrisinhos falsos. Sério, gaúcho é o povo mais babaquento do mundo, mas ai já é demais. Se a passagem de Wenders por São Paulo gerasse momentos tão involuntariamente engraçados como esse, ainda poderíamos justificar a sua vinda. Tipo, o São Paulo Futebol Clube (time que adora esse tipo de pataquada) dando uma camisa para ele escrita "Wim Wenders, agora também um bambi orgulhoso". Para quem duvida, vai aqui embaixo a foto. Despeço-me agora. Bjunda.

Atenção, Wes Anderson: esse será você amanhã. Tá vendo que micão? Quem mandou dar moral pro Seu Jorge?

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Um texto sem refresco


Um calor absurdo atinge nossa metrópole. Uns dizem que a primavera chegou de vez e outros gostam de ressaltar o período de calor com a famosa conversa de elevador "que calor não?"; deixando os idiotas da obviedade e a retórica de lado, pensei em muitas coisas para postar neste blog no meu período de retiro espiritual forçado, em verdade, até rascunhei uns trechos sobre temas interessantes abrangendo desde música até fenomenologia aplicada ao cinema. Poderia, inclusive, colocar uns trechos desconexos com a finalidade de denotar que não fiquei sem fazer nada, mostrando assim que minha cabeça não é um deserto de idéias, mas quer saber: não vou falar nada, principalmente porque não sei como dizer e justificar as minhas frequentes escapadas e ausências. Posso ter ido para Paris, Texas...




sábado, 11 de outubro de 2008

Se Superman é Clark Kent, Tyler Durden é Tyler Durden

Os nomes que adotamos na internet são todos pseudônimos, só pra constar. E no mundo real nossas identidades permanecem secretas, ainda que, entre si, nos conheçamos e nos freqüentemos, nós que escrevemos, cantamos e posamos para internautas do mundo inteiro. Somos como uma liga da justiça que, em dia de semana, é gente como a gente, que pega ônibus e passa mal se come maionese vencida. Quando nos encontramos pelas ruas de São Paulo, por exemplo, como outro dia em que encontrei Mallu Magalhães no metrô, nos cumprimentamos discretamente, às vezes apenas com um olhar cúmplice.

Eram umas três e meia da tarde, e eu embarquei na estação Ana Rosa, a caminho de..., para me deparar com Mallu, sentada com o violão no colo. Ela quase não conseguiu disfarçar a surpresa e contentamento ao me ver:

- Oi, Camarada Fundamentalista! – um tom de voz quase que alto demais, que ela já diminuiu pela metade ao prosseguir: - Que bom te ver, rsrsrs.

- Bom te ver também, Mallu Magalhães, rsrsrsrsrsrs – respondi, me ajeitando entre um cara enorme, de sobretudo, e uma mulher cheia de sacolas, que me fizeram pensar que Mallu Magalhães era o tipo de pessoa que não segurava sacolas nem mochilas para os outros em ônibus e metrôs, tsc, tsc, tsc. Mas eu sou muito julgador, por isso afastei esse pensamento da cabeça e ia perguntar não sei quê pra ela, quando o trem parou bruscamente, e o cara enorme oscilou como um carvalho golpeado por um guindaste, e me perdoem a eloqüência inesperada da imagem.

"Mallu, que surpresa!"

(Um fã da Mallu que leu a primeira versão deste relato observou que provavelmente ela não se oferecera para segurar as sacolas da mulher das sacolas porque estava com seu inseparável violão no colo, como eu mesmo mencionei. Plausível, mas mantive o original, compensando-o com este adendo, por achar mais honesto registrar minha possível precipitação. Agradeço ;) especialmente, portanto, a Wilson F., o fã, que me garantiu que Mallu Magalhães não só segura bolsas e sacolas, como cede seu assento para idosos, gestantes e deficientes físicos.)

Ô, sim, era naquela época de constantes falhas mecânicas do metrô, que não suportava o aumento excessivo de usuários com a integração metrô-ônibus possibilitada pelo Bilhete Único. O vagão lotado, e quente como é na Linha Verde, já imaginem, porque, não sei se lembram, mas as paradas devido a falhas mecânicas então podiam durar de vinte a trinta minutos, como de fato se deu.

Passados dez minutos, e nada, as pessoas se abanando, bufando e resmungando, como uma purulenta galé de degredados, Mallu e eu tivemos a idéia de salvar o dia, principalmente considerando que havia ali muitos dos internautas que tanto nos amavam em segredo. Demos uma piscadela, e ela já foi tirando o violão da capa. Não foi preciso mais nada para que meia dúzia – dentre os quais, um casalzinho indie e um rapaz com um Dom Casmurro do Estadão nas mãos – a reconhecesse, mas, contidos como são os jovens bem-nascidos, procuraram apenas chegar mais perto, porque sabiam que dali sairia aquele folk gostoso e intimista, ora entranhado, que fez a fama de Mallu Magalhães.

"Essa aqui é pro meu grande rsrs camarada rsrsrsrs, Camarada Fundamentalista."

A pedido meu, que considerava a mais representativa cover de seu repertório e especialmente adequada à ocasião, sem dizer que a de Mallu era a melhor interpretação desde a versão original de Johnny Cash, ela começou a introdução de “Folsom Prison Blues”:

“I hear the train a comin'

It's rolling round the bend

and I ain't seen the sunshine since I don't know when,
I’m stuck in Folsom prison, and time keeps draggin' on
but that train keeps a rollin' on down to San Anton.
When I was just a baby my mama told me:
Son, always be a good boy, don't ever play with guns.
But I shot a man in Reno just to watch him die
When I hear that whistle I hang my head and cry.”

E que olhar era aquele no rostinho de Mallu, da angústia negra de Memphis, da revolta estudantil do Quartier Latin, da sanha assassina das Bolsas em 1997, era o puro espírito maldito! Arrepiado, dizia comigo mesmo que já não estávamos num vagão de metrô entre as estações Paraíso e Brigadeiro, aquilo era a Caverna de Adulão, referência que os leitores versados nas Escrituras não deixarão passar. E continuou, prodigiosa:

“I bet there's rich folks eating in a fancy dining car
they’re probally drinkin' coffee and smoking big cigarrs.
Well I know I had it coming, I know I can’t be free
but those people keep a movin'and that’s what torture means.”

(Muitos blogueiros me perguntam, em congressos de que participo, se a introdução de letras de música, mesmo quando devidamente contextualizadas, como “é o caso de seus posts”, eles contemporizam, se mesmo assim é legítima. A pergunta procede desde que muitos amadores, notadamente miguxinhas não filiadas, fazem disso um expediente gratuito e preguiçoso. Costumo dizer que a subversão fraudulenta de um recurso legítimo depõe, por certo, tão-somente contra o subversivo, como se diz que a lei é boa, nós é que somos corruptos.)

“Well if they'd free me from this prison,
if that railroad train was mine
I bet I'd move just a little further down the line
far from Folsom prison is where I long to stay
and I'd let that lonesome whistle blow my blues away.”

Aquilo era um canto da terra, profundo e verdadeiro apenas como um produto da natureza podia ser. E eu tinha certeza de que todos naquele cubículo haviam transcendido, nem que por quatro minutos, porque quando desembarcaram, minutos mais tarde, na Trianon-Masp e na Consolação, iam com um semblante como que purificado por uma grande fúria finalmente liberada pela voz e violão de Mallu Magalhães. Ela, que também o pressentira, quando nos despedimos no Sumaré, onde ela ia descer, me confessou, renunciando por um instante a sua grande humildade de artista folk:

- E pensar que eu nunca estive em Folsom Prison, rsrsrsrsrsrsrs.

– Nem nós, Mallu, nem nós.

A Arte, e somente a Arte, é capaz de nos unir tanto na miséria aviltante, como na glória excelsa.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Fomos ao Cinema ver Ensaio Sobre a Cegueira




Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.


Camarada Progressista acorda. Camarada Progressista toma café, e liga para o Camarada Fundamentalista.

C.P -Alô. Vamos ver o Ensaio Sobre a Cegueira

C.F. -Vamos. Vamos ver o Ensaio Sobre a Cegueira

C.P. -Vamos chamar aquela amiga que leu o livro e achou bala?

C.F. -Vamos. Vamos chamar aquela amiga que leu livro e achou bala

C.P. -Eu sei a história do livro. Todo mundo fica cego, do nada. A sociedade começa a entrar em colapso, e todos acabam descobrindo -depois de muita sujeira e sacanagem- que o ser humano somente pode aproveitar o relacionamento com os seus semelhantes de uma maneira harmônica e civilizada quando ele não pode enxergá-los, livrando-se assim dos preconceitos e pré-julgamentos em relação aos seus iguais. O negócio segundo o velho batuta é todo mundo colocar uma venda nos olhos e sair amando todo mundo. Bem que eu achava que os cegos sempre tinham muito amor para dar mesmo. O filme deve ser a mesma coisa. Um monte de simbolismos bonitos e ingênuos. O Saramago, velho comuna que é, acredita mesmo nessas bobagens.

C.F. -É verdade.

C.P. -Né?

C.F. -É

C.P -Marca ai, e vamos.

Marcamos, e fomos

Depois do filme:

C.P -Pô, esse filme é uma porcaria

C.F. -É

C.P. -Teríamos aproveitado melhor se tivéssemos visto com uma venda nos olhos. Você sabe, apenas com o áudio, não teríamos de ter aturado o anacronismo Stoneano do Meirelles, ou então a desagradável sensação de ver a nossa cidade usada como um símbolo do colapso da civilização ocidental, da inadequação humana, e de todo o resto.

C.F. -Mas isso não seria deveras metalinguístico?

C.P -Talvez fosse essa a intenção do cara, percebemos que a melhor maneira de entender o espírito do filme fosse vê-lo com os olhos fechados ou obstruídos. Vamos tentar ver o filme de novo dessa maneira? Com uma venda nos olhos?

C.F. -Não, pombas. Isso seria deveras constrangedor. Vai você, que eu fico. Leva a amiga que achou o filme bala.

C.P. -Ela aceitaria a experiência?

C.F. -Não sei. Liga lá. Hi - 5

C.P. -Hi-5



Liguei. Ela não aceitou. Fui então sozinho. Entrei normal na sala de cinema, sussa. Ai, quando as luzes se apagaram, peguei minha venda e coloquei nos olhos. Magia. O filme aconteceu para mim. Emocionante. Jamais havia notado o quanto podemos evoluir como seres humanos quando colocamos uma venda nos olhos. Liguei então para o Fundamentalista


C.P. -Alô

C.F. -Alô

C.P. -Vi o filme com uma venda nos olhos. Transcendi.

C.F. -Você é um idiota.

C.P. -Você diz isso agora. Se ficasse com os olhos fechados, perceberia o quanto uma afirmação dessas pode ser carregada de ódio e pré-julgamentos. Vamos fazer assim: feche os olhos, e eu falarei mais uma vez sobre a experiência que tive, e você verá que a sua reação anterior foi equivocada.

C.F. -Ok. Fechei os olhos.

C.P. -Bom. Vamos tentar de novo. Oi, Fundamentalista, eu assisti de novo o Ensaio Sobre a Cegueira, dessa vez com uma venda nos olhos. Transcendi.

CF. -(Segundos de silêncio depois) Você é um idiota. Nossa, chamar você de idiota com os olhos fechados foi uma experiência única. Transcendi.

C.P. -Bah. Será que eu consigo as 10 pratas que paguei?

C.F. -Não sei. Tente pedir a grana de volta com uma venda nos olhos.

C.P. -Ha ha. Nessas eu já tirava a venda e te mandava uma nas fuças. Mudando de assunto, você viu o casamento da Sandy?

C.F. -Vi. Também tenho acompanhado todas as notícias relacionadas ao casório, lua de mel e tudo mais. Estou gastando um dinheirão com as Contigos da vida. Mas vale a pena. A Sandy é realeza.

C.P. -Digo o mesmo! Será que o cara que ela casou será um bom marido? Qual é o nome dele mesmo? Joca, Jonas, Lúcio, André, Márcio... putz... deu um branco..

C.F. -Não é Ricardo? Ele era daquela grupo meio Hanson com violinos, não era?

C.P. -Era sim. Mas o pai dele fazia parte. Então, era um grupo meio Hanson com violinos e com o pai junto. Mas arrisco dizer que era melhor que o Hanson. Liga pra nossa amiga, ela sabe o nome do carinha, parece que ela acha ele um pão.

C.F. -Ligo sim. E a crise econômica, você tem se informado a respeito?

C.P. -Putz, não... é que, tipo, dá um bode de ler sobre... Mas conta aí pra mim o que está rolando!

C.F. -Estou por fora também. Pena.

C.P. -Pena.
O telefone tocou. Era outra linha.

A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

De como Jewel e eu salvamos a Augusta

Jewel e eu. A Jewel de 95 é um dos meus 14 grandes amores. É uma lista fixa que foi inaugurada muito antes de eu saber que seria uma lista, quando eu vi um dos irmãos Hanson, aquele, e achei que era uma garota, pelo que me lembro, mas isso não vem ao caso.

Depois mais equívocos, quando eu me apaixonei pela Victoria (então) Adams, ainda Posh Spice, por causa de “2 Become 1”, que eu cantava junto, em falsete, apontando com o dedinho que nem ela fazia no clipe.

Mas se é natural sentir atração por um homem, achando que é uma mulher, e mesmo depois de descobrir, não querer acreditar, bem, e gostar de Jewel?

Em Pieces of You, seu debut, ela expôs sua alma dilacerada, ecoando a dor de multidões que comprariam o disco, garantindo um colinho milionário para suas lamentações intermináveis, mas totalmente justificadas. Porque ela não negociaria seus sentimentos para agradar ninguém. Aqui, o paralelo com Marilyn Mason é evidente e inevitável, como muito bem assinalado pelo Wikipedia.

Mas Jewel e eu. Talvez nossa história tenha começado apenas por causa da rua Augusta. Sim, acho que é isso mesmo. Já posso me lembrar...

Jewel de 95.

De como eu desci a Augusta, sentido centro, e provei um pouco do mundo cão. Como descesse a Augusta, sentido centro, muito, muito longe de casa, logo ficou claro pra mim que seria difícil viver o lado Coca-Cola da vida ali. E a coisa só piorou, quando a Bichinha Pobre, perto de mim, disse detestar cinema nacional. Nesse instante, devastado, pela quinta vez naquela semana jurei vingança ao Capital, que fazia do homem proletário, e do proletário consumidor, e do consumidor bichinha, aquela bichinha.

Um menino como eu, criado a leite com pêra, conhecia lugares como a Augusta apenas de ver Amarelo Manga ou Baixio das Bestas. Aliás, assistir Baixio das Bestas é um tipo de obra social.

De como eu me juntei com o dono do Feliciano’s Bar para trazer Jewel pra Augusta e salvar aqueles desgraçados. Com essas noções de degradação social do cinema brasileiro misturando-se na minha cabeça, é que eu me lembrei do clipe de “Who Will Save Your Soul”, em que a Jewel salvava um bando de excluídos incontinentes num banheiro público só tocando violão. Foi aí que eu tive a idéia de trazê-la pra cá, e então era só ela tocar violão e fazer aquele bando de pederastas e meretrizes mudarem de vida.

Parei pra tomar uma Coca num boteco, eu, um menino criado a leite com pêra, mas que, àquele ponto, já não tinha mais escrúpulo algum. O dono do bar, que era uma espécie de Paul Newman paraibano, chegou-se pro meu lado e disse: – Eu sei o que você tá pensando, que isso aqui não tem jeito. Mas você, um menino criado a leite com pêra, não veio parar aqui por acaso. Não podem imaginar como aquelas palavras me devolveram toda a vontade de mudar o mundo. Puxei na hora um santinho do Glauber Rocha que eu carregava comigo, junto ao peito, e beijei-o.


Terminei a Coca de um só gole e disse àquele clarividente comerciário:

- Eu acho que sei o que fazer, mas preciso da sua ajuda.

- Opa – ele respondeu e bateu o paninho encardido contra o balcão.

Contei então pra ele o meu plano de trazer Jewel pra Augusta. Nessa hora fizemos o Hi-5.

De como eu não tinha idéia de como trazer Jewel pra Augusta e salvar aqueles desgraçados e acabei desacreditado pelo dono do Feliciano’s Bar. Então, o dono do bar me perguntou como traríamos a “Jiu” e seu violão pra Augusta. Respondi que eu não era um indivíduo particularmente prático. – E não particularmente? – ele me perguntou. Desconversei, falando que uma coisa dessas não acontecia assim, da noite pro dia, a-ham.

De como o acadêmico falha miseravelmente em alcançar o Homem Comum. O problema todo do Homem Comum é esse: a incapacidade de deter-se no plano das idéias, viver uma experiência puramente teórica, por mais paradoxal que pareça. Ele quer ver logo os resultados, quer partir pra ação quando não é hora. E, aliás, quem pode saber qual é a hora? Era o que eu procurava explicar ao dono do bar. Inutilmente.

De como tudo acabou inesperadamente comigo cantando pro dono do Feliciano’s Bar “Who Will Save Your Soul”, porque também ele era um desgraçado. Então, eu comecei a cantar, arriscando inclusive um falsete:

People living their lives for you on TV
They say they're better than you and you agree
He says "Hold my calls from behind those cold brick walls"
Says "Come here boys, there ain't nothing for free"
Another doctor's bill, a lawyer's bill
Another cute cheap thrill
You know you love him if you put in your will
Who will save your soul when it comes to the flower
Who will save your soul after all the lies that you told, boy
Who will save your soul if you won't save your own?