quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Código Hays: 40 anos sem você - Parte 1

Atenção: o texto a seguir faz uso de linguagem altamente inapropriada e chula, degradação de valores morais, deturpação da ética e dos bons costumes, glorificação da violência, um certo fascismo cultural e citações frequentes ao uso de drogas e outras substâncias de consumo ilícito. Ah, quase ia esquecendo: também podem haver spoilers, que é a palavra inglesa que identifica a revelação de pontos importantes ou do final das tramas de filmes. De livros também, mas não trataremos de literatura aqui. Bom, mas quem sabe um dia? Nas palavras de Groucho Marx: "cada vez que alguém liga a televisão perto de mim, eu vou para outra sala e abro um livro". Mas o que eu quis dizer com essa citação? Seria certo querer levantar uma batidíssima discussão sobre os malefícios da exposição em massa aos programas de TV em detrimento dos livros? Vocês sabiam que eu fiz um vestibular uma vez cujo tema da redação era exatamente esse? Hein? Hein? Tirei 7,5! Tá bom ou quer mais? Se eu passei? Mistério.

Vocês, assim como eu, devem se maravilhar cada vez que assistem a um filme da Classic Hollywood. O glamour, a galhardia, a classe e a elegância de toda uma era. Mas vocês também devem estranhar a linguagem polida, as cenas de amor resumidas a meras bitocas, os flertes inocentes, a violência estilizada e over, a ausência completa do vermelho do sangue, a inexistência dos palavrões... sim, vocês se perguntam: "mas não é possível, esse Humphrey Bogart sempre anda com a escória nos seus filmes, e o maior xingamento que ele é capaz de proferir é o inofensivo "infernos"? E o James Stewart? Será que passou a vida toda sem jamais usar qualquer profanidade no seu vocabulário? E o Cary Grant, jamais chamou uma das suas pretendentes nos seus filmes de gostosa, pedaço de mal caminho, ou coisa parecida? E os homossexuais, não existiam na primeira metade do século? Eles são uma invenção da Era de Aquário? Nem vou para o lado das mulheres! Juro que não vou! Aparentemente os figurinistas da época não conheciam a palavra decote. Sim, meus amigos, tudo isso deve deixar vocês com uma pulga atrás da orelha. Afinal, o mundo era tão sujo quanto o é nos nossos dias, Segunda Guerra que nos diga. Mas calma que o buraco é mais embaixo.
Resumindo: na década de 20 o cinema mudo estava descabando, com estrelas morrendo de overdoses, assassinatos, alcoólatras, casos de estupro (Fatty Arbuckle) e filmes mostrando cenas de orgia, mulheres nuas, abortos e tudo aquilo que deixava a extrema-direita norte-americana de cabelo em pé na época. Então nos anos 30 foi promulgada a criação do Código Hays, regido pelo sistema de estúdios e que consistia na pré-censura dos filmes , todos avaliados por uma comissão julgadora. Os diretores e roteiristas tiveram de sambar para driblar o Código por longos 38 anos, até a sua extinção, em 1968, quando foi substituído pelo sistema de classificação (maiores de13, 15 e 18 anos) que vigora até hoje, e que deu liberdade total para os filmes terem o que bem quisessem seus diretores, roteiristas e produtores. E como estamos em 2008, já vão quarenta anos do fim do código. Diretores como Hitchcock, Billy Wilder, Ernst Lubitsch, John Ford e Howard Hanks produziram alguns dos melhores filmes de todos os tempos driblando com maestria a ditadura do código. Mas eu fico aqui imaginando como seriam as tramas de filmes clássicos se o Código não existisse, e tudo fosse liberado como o é hoje em dia. Por isso, vou tentar aqui reproduzir para vocês hipoteticamente como ficariam os grandes filmes da época. A quem ficar ofendido: tente lutar pela criação do Código Hays da internet. Esse Progressista vulgar ia dançar bonito. Na semana que vem publico a parte dois, na qual tentarei imaginar como ficariam filmes modernos como Pulp Fiction e Clube da Luta, entre outros, sob a égide do Código. Isso é, se não formos censurados até lá. Esperemos.

CASABLANCA
Se Casablanca fosse feito sem ter de respeitar as vigorosas leis do código, Bogart jamais teria deixado a Ingrid Bergman fugir com o manezão herói da resistência nazista. Nada de "nós sempre teremos Paris". Bogart ia mandar um belo "nós sempre teremos essas duas balas que eu vou mandar na cachola de vocês", e ia tirar um três oitão do bolso e estourar a cabeça dos dois. Depois, o comandante de polícia francês interpretado pelo Claude Rains - que o filme apenas sugere pelos seus modos ser homossexual- chegaria para consolar Bogart, e daria então uma leve passada de mão nele, soltando um "você sempre poderá ter a homossexualidade". Os dois então dariam as mãos, e Claude viraria para os seus comandados, soltando o "prendam os suspeitos de sempre", ao que Bogart complementaria com um "isso é uma coisa bem Verbal Kint, Claudinho!". Risinhos e carícias, os dois entrariam então no avião e o filme veria então o seu the end. Ficaria bem melhor, não é?

Uhm, já entendi...


FESTIM DIABÓLICO
O filme é famoso por mostrar um suposto casal de amigos recebendo convidados para uma festa, enquanto um baú no meio da sala guardava o cadáver de um homem morto pelos dois no começo do filme. Hitchcock não faz qualquer menção para a óbvia homossexualidade dos dois, deixando para os espectadores interpretarem por si próprios. Mas e sem o Código Hays? Vixe, os convidados nem bem estariam chegando, e os dois já estariam lambendo os beiços. O professor interpretado pelo James Stewart soltaria piadas a cada dois segundos, no melhor estilo " em casa de viado, todo espeto é de pau" e tudo mais. No final, sua homofobia seria punida com uma violentíssima cena de assassinato, e então presenciaríamos a primeira cena de canibalismo do cinema. Perderíamos a clássica tomada final com os três esperando a polícia, mas temos de admitir que nada é melhor do que uma boa cena de canibalismo. Seria, sim, um avanço importante para a sétima arte. E ficaria bem melhor também.

A MALVADA
Sério, sem o Código Hays esse filme teria a maior concentração de "you bitch!" da história do cinema. Ia ser um a cada dois segundos. E obviamente, a lascividade da personagem da Anne Bexter iria então poder ser exaltada em toda a sua glória. O filme teria então a exata dose de decadência vulgar clamada pelo roteiro. Uma ceninha de lesbianismo entre a Bettie Davis e a Baxter, no melhor estilo "entre tapas e beijos"? Acho que rolaria. Eu acho que assim ficaria melhor.

"Are you talkin to me, bitch? Want to get some?"


A FELICIDADE NÃO SE COMPRA
James Stewart ia encher os seus filhos e a mulher de porrada na cena anterior à sua ida para a ponte. Nas cenas de brigas no bar, ia ser um festival de palavrões também. A atmosfera do filme ia ser bem South Park, com os habitantes da cidadezinha de Bedford Falls soltando blasfêmias e profanidades a cada dois segundos. E na cena final, Stewart ia pegar todo o dinheiro juntado pelos habitantes da cidade e ia fugir com a família para o norte, dando uma bela banana para os caipiras. Sim, o Código Hays também exigia finais felizes e edificantes para os filmes. Mas sem ele... Seria melhor.

RASTROS DE ÓDIO
O adultério apenas levemente sugerido pelo filme no início seria mostrado em todas suas cores para os espectadores, e o personagem de John Wayne iria no final matar mesmo a personagem da Natalie Wood, como ele disse que faria durante todo o filme. Antes de morrer, Natalie ainda teria tempo de soltar um "eu posso ser um lixo comanche, mas tô na moda!". Wayne, desvairado, soltaria uma rajada de balas em cima dela e do mané que tentou protegê-la e que nos atormentou com cenas secundárias inúteis durante todo o filme. Cenas essas que foram frutos do próprio Código, já que serviam para amansar o tom da narrativa, e se não fosse por ele, John Ford jamais as teria colocado no filme. A morte dos dois seria então a verdadeira redenção. Ia ser uma cena um tanto como cruel, já que Wayne tinha duzentos metros de altura e Natalie era diminuta, mas o choque ia ser real. E não haveria redenção para o personagem de Wayne, que seguiria sendo o racista safado do começo do filme. Melhoraria bastante, mesmo.

Nessa, Wayne já mandava dois balaços.


...E O VENTO LEVOU
Sério, se a Scarlett O'Hara já era uma perva mesmo com o Código, imaginem como ela seria sem a ação dele? Uma dominatrix de fazer a Sharon Stone no Instinto Selvagem parecer a Dorothy do Mágico de Oz. Ficaria muito, muito, mas muito mesmo, melhor. Falando em Mágico de Oz...

MÁGICO DE OZ
O mais simples de todos. Toda a parte passada em colorido no filme, com a Dorothy em Oz, teria uma explicação. Seria apenas resultado de uma viagem daquelas em LSD dela com os seus amigos caipiras-junkies do Kansas. Doidona, ela teria imaginado todo esse mundo colorido, cheio de Homens de Lata, Espantalhos falantes e Leões medrosos, e no final, com o efeito do ácido passado, ela acordaria achando que tudo tinha sido fruto do furacão. Mas a tomada final ia mostrar o comprimido psicodélico, indicando a verdade. Que melhora seria essa.
Semana que vem, a parte 2.

Um comentário:

  1. Caraca, ri muito com teu post. Nas minhas pesquisas a respeito do código Hayes, me deparei com teu blog e fiquei aqui, rindo e aprendendo mais ainda. obrigado por fazer eu perder tempo e atrasar ainda mais a minha pesquisa. Foi um prazer...
    Grande abraço!

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