sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

E aqui deixamos de ser blasé

O sol brilhou frio sobre nossas manhãs na última terça-feira. Briony Tallis correu, abraçando um maço de folhas de papel totalmente preenchidas com uma letra miúda, para me mostrar sua nova incursão literária. Eu estava do lado de fora, tentando consertar uma velha bicicleta, como se eu fosse capaz de fazê-lo. Juntamente com um sopro gelado e súbito de ar, Briony chegou. Estava visivelmente eufórica. Notando-o, fiz-me indiferente, apenas para provocá-la, e continuei com meus cálculos e movimentos inúteis sobre um mecanismo cujo nome ignorava. Muito previsível, ela me gritou. "Ora, Briony, o que foi?"

Neste momento, fomos interrompidos. Era o Camarada Progressista. Heath Ledger havia morrido. O camarada e eu éramos apaixonados por cinema, e aqui evito usar o termo “cinéfilo”, pois não quero que com ele venha o preconceito que aqueles que se denominam cinéfilos demonstram por ocorrências como a morte absurda e inesperada de Heath Ledger, por reunir elementos que a aproximam mais do mundo das celebridades que do bom cinema. E, neste sentido, um cinéfilo é muito característico, já que ele se prende a algum momento passado, como o dos musicais dos anos 1940, afirmando que ali o cinema atingira seu auge como forma e, por conseqüência, reduzindo todo o resto, principalmente a produção contemporânea, a expressões minguadas de pseudo-arte. Aqui, eu deveria dizer “eu lamento por vocês”, mas não, porque não lamento.

Eu não vou defender a arte ou pregar em nome dela. Antes, quero afirmar este fenômeno que vivemos, a cultura (de massas). Alguém irromperá na platéia e dirá “Godard disse que a cultura é inimiga da arte”. Ah, mas Godard disse tantas coisas. E não se trata disso, ainda que acima eu tenha procedido a uma espécie de auto-justificação. Heath Ledger morreu. Nenhum de seus filmes me chamava particularmente a atenção. No entanto, era um ator jovem e talentoso: a descrição mais gasta ainda vale para demonstrar que, no caso, transcendemos a discussão cinematográfica, forçados à discussão existencial.

Cogita-se suicídio. A família desmente. Como o Camarada Progressista me dizia, logo surgirão dezenas de fatos que em tudo indicavam uma personalidade errática e suicida de alguém que jamais satisfizera, com seu comportamento, ao espírito sanguinário dos paparazzi. Aliás, uma dessas explicações mirabolantes já se pronuciaram, como ainda o camarada me informava: o envolvimento com o personagem do Coringa, um de seus dois últimos trabalhos, já concluído, levaram-no a encher a mente de “pensamentos psicopáticos”. Como eu duvidaria disso?

Seja como for, um rapaz de 28 anos está morto. A tragédia disso é muito evidente para nós, que prezamos tanto a juventude; ainda mais a juventude bem-sucedida. E muito provavelmente de forma acidental, tornando tudo muito mais absurdo. Mas, enfim, agora, quando olhamos para uma foto do ator, ficamos é com uma sensação de vazio enorme, como se afinal fôssemos muito próximos dele e a nossa perda fosse real. De fato, talvez tenhamos perdido algo, que não sei bem especificar. Toda vez que morre alguém de quem soubemos mais do que o primeiro nome, acontece isso. E a sensação de vazio é real, apesar da menção a ela ser clichê.

3 comentários:

  1. Camarada Fundamentalista, senti o mesmo. Uma grande decepção por toda nossa incomunicabilidade, que leva ao desperdício de uma vida jovem, sensível e talentosa. E simpatia pela menininha que crescerá sem o apoio e proteção do pai. Foi o meu que me ensinou a amar os livros e o cinema. A tarefa da mãe será redobrada. Gostei muito da sua homenagem e da foto escolhida. Você também é um artista!

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  2. depois de assistir johnny e june de novo, esse findi no telecine, eu pensei: é preciso ter mais junes carters para ajudar esses astros depressivos...

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