terça-feira, 6 de maio de 2008

Complexo de Orfeu

Mes amis, ainda na esperança de civilizá-los, quero compartilhar mais uma teoria muito fina que acabei de conceber. Diagnostiquei, para horror da comunidade médica, que negligenciou fenômeno tão gritante, mais um complexo, que ora chamo complexo de Orfeu, para preservar a tradição freudiana de se remeter à vigorosa potencialidade simbólica do mito, apesar de Freud ser um filisteu. Adiante.

Camarada Fundamentalista demonstrando, por meio de fotos, como o complexo de Orfeu prejudica nas práticas esportivas.

Conhecem a história de Orfeu e Eurídice? Creio que não. De todo modo, facilitarei para vocês. Diz a Wikipédia: apaixonados, Orfeu e Eurídice se casam. No entanto, em razão de sua grande beleza, Eurídice começa a ser assediada por Aristeu, apicultor (profissão em voga naquela época), cujos favores são por ela recusados, o que o leva a persegui-la. Fugindo dele, Eurídice tropeça numa serpente, é mordida e morre. Em desespero, Orfeu toma sua lira e desce aos infernos para trazer sua amada de volta. Nesse meio-tempo, terá ele de convencer Caronte, o barqueiro, a conduzi-lo pelo rio Estige; enfrentar Cérbero, o cão de três cabeças; e, finalmente, apelar junto a Hades pela vida de Eurídice. Perséfone, esposa do deus, intercede em favor de Orfeu, e Hades se compadece. Sob uma condição, entretanto: ao longo de todo o caminho de volta, Orfeu irá à frente de Eurídice, sem poder, em momento algum, olhar para trás. Mas, quase ao fim do trajeto, para se certificar de que Hades não o enganara, Orfeu se vira. No mesmo instante, o fantasma de Eurídice dissipa-se na escuridão. Bravo.

Toni Garrido e Patrícia França no filme de Carlos Diegues, Orfeu (1999).

Mes amis, o que eu chamo de complexo de Orfeu integra a própria constituição da masculinidade dos homens decentes, incluindo os cafajestes de bom coração, como as mulheres crêem existir, porque não é o momento para derrubarmos falsos ídolos. Trata-se de um complexo de salvador, quando o indivíduo pretende que sua parceira (efetiva ou em potencial) corre algum perigo e que ele é responsável por protegê-la. Observem que o fenômeno é estreitamente ligado ao já exaustivamente assinalado papel de protetor que primitivamente o macho exerce em relação à fêmea. No entanto, enfatizamos a diferença, sendo o complexo de Orfeu uma especialização, ou refinamento. Uma especialização das sociedades complexas, em que o perigo quase sempre não é real. Mas não nos adiantemos.

Para que fique claro, preparei uma pequena lista de sete filmes que exemplificam o fenômeno. Espero que vocês tenham visto todos, pois não vou incluir sinopses para os ignorantões.

Como disse, e creio ser essa a característica distintiva do complexo, o suposto perigo a que está submetida a mulher, no caso, Eurídice, é em grande parte construído na mente do homem, no caso, Orfeu.

Eurídice costuma ser indiferente ou mesmo resistente à salvação, como em Au Hasard Balthazar. No final do filme, Marie foge das únicas pessoas que lhe quiseram bem em toda a sua trajetória auto-destrutiva. Infelizmente, nesta singela obra-prima de Bresson, Orfeu é um bundão.

Orfeu e Eurídice, de Bresson.

Convidei uma feminista, perspectiva a mais distinta possível da minha, para assistir comigo a cada um dos filmes, a fim de referendar a isenção das minhas observações. Coçando o queixo peludo, ela assentiu. Ao final das sete sessões, realizadas ao longo de uma semana, tendo eu feito minhas considerações, concluímos ambos o seguinte:

“A mulher precisa ser salva.”

“O homem é o salvador da mulher.”

Foi o que a filmografia selecionada propunha e o que o complexo de Orfeu por mim identificado circunscrevia com a elegância peculiar às teorias geniais. O complexo de salvador responde ao príncipe encantado que as mulheres fantasiam. São tolices complementares.


***


Superestimado: como se James Stewart pudesse com duas Kim Novak, pff!

Em Vertigo, de Hitchcock, e Solyaris, de Tarkovski, vamos encontrar a mulher morta e seu duplo, introduzido como uma segunda chance para Orfeu. No entanto, em ambos os casos, o duplo se mostra falho em substituir a original, e a insistência nessa última constitui um estado doentio, com conseqüências trágicas, ainda que libertadoras. Embora eu sempre tenha preferido Judy Barton, claro que sem a sombra verde, por favor, a Madeleine Elster, muito governanta alemã pro meu gosto.


Há que se salvar Eurídice de muitas coisas, inclusive da confusão mental. Para tanto, em Hiroshima, mon Amour, Orfeu torna-se terapeuta e faz sua Eurídice elaborar indefinidamente, até que se tenha libertado da amargura do passado. A breguice enrustidíssima dos franceses, isto é, de Duras e Resnais. Se filme de nouvelle vague tivesse final, diria que, aqui, Orfeu foi bem-sucedido.

Eis agora um filme que ameaçou derrubar completamente o conceito do complexo de Orfeu, que a princípio admitia exclusivamente a devoção de Orfeu a Eurídice. Com Rocco e i suoi Fratelli, percebi que Eurídice não é o elemento nuclear da fabulação que o complexo engendra, óóó, engendra. Antes, ela é só uma peça da constante aspiração humana ao Ideal.

A fantasia corre independentemente de Eurídice, que é uma resposta idealizada a uma existência confusa, sem perspectivas; a mulher é tomada como um escape e ao mesmo tempo como uma promessa de ventura, como a Sylvia, de La Dolce Vita. Na cena mais célebre do filme, na Fontana di Trevi, Marcello Mastroianni faz juras de amor a uma mulher que não entende uma só palavra do que ele diz. Nessa mesma linha, temos o protagonista de La Prima Notte di Quiete, de Valerio Zurlini, interpretado por Alain Delon, um professor que se apaixona por uma aluna na qual ele enxerga um ideal de pureza, contra todas as probabilidades. Nhami, nhami.

Ah, perva mia! Perva mia!

A propósito do filme de Zurlini, fica também claro que Orfeu é um idealista sem ideologias. Não raro acontece de ser um cético, próximo ao niilismo, como é o personagem de Alain Delon, ainda que a contragosto. Pois céticos são freqüentemente senão idealistas radicais, e niilistas invariavelmente se refugiam na estética. Acreditam na Beleza. E como lhes é fácil, principalmente para os desgostosos, ir da Beleza à Pureza, ao Bom, e daí ao Transcendente, o que secretamente buscavam. Mas noto que já bocejam, meus beócios leitores.

Assim, em Rocco e i suoi Fratelli, as obrigações familiares ficam à frente de Nadia, que é inutilmente sacrificada por Rocco em lugar do irmão canalha, Simone. Porque o anseio de se fazer salvador é constantemente indiferente a quem será salvo. E há quem ache justo colocar a família acima da justiça. Deixo que vocês mesmos o julguem, meus caros.


Annie Girardot e Alain "Filhinho-da-Mamãe" Delon.

Pretender que a mulher precise ser salva é uma forma de se tornar merecedor do Ideal que ela representa. Mas, melancólico epílogo, o desejo de salvá-la não se concilia com o desejo de possui-la. Como o mito e os casos – sim, os filmes são casos – mostram, Orfeu sempre fracassa. Por isso, quero encerrar com aquele que considero o anti-Orfeu, na medida em que não fracassou: Rick, de Casablanca. A ética do “Sempre teremos Paris” nos diz que, para merecer o Ideal, é preciso renunciar a ele. Nossa.

10 comentários:

  1. Linda essa tese, Fundamentalista!

    Já dá pra tentar um mestrado com ela, dependendo do seu curso. O caso realmente se comprova e há que diga que se aplica na vida real, também. Não apenas nos "casos". Afinal, é fato que todo homem quer salvar toda mulher. Seja para se sentirem merecedores de seu amor, seja pra se sentirem possuidores de direitos sobre elas. O que nem sempre - leia-se: quase nunca - dá certo, é claro!

    Resta uma dúvida: a feminista do queixo peludo que assistiu os filmes com você queria salvar as Eurídices em perigo ou ser salva pelos Orfeus apaixonados?

    Outra: quem é a sua Eurídice, Camarada?

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  2. Segundo o mito da Rapariga que se transforma em Lua, a mulher não pode ser salva pelo tal do Orfeu recalcado no macho civilizado, porque ela tem de se transformar em Lua. Segunda hipótese: a mulher não precisa ser salva porque sua própria constituição a coloca no tempo da origem, isto é, no tempo sagrado das águas primordiais. Lá, não existe perigo: o Monstro Marinho sempre será vencido.
    Terceira Hipótese: o homem, por ser emocionalmente mais frágil, necessita de salvação, mas não consegue perceber. Ao tomar para si a missão de salvar a mulher projeta nisso a própria salvação, desse modo pode apaziguar-se do pavor tremendus: a consciência da vulnerabilidade de uma linha reta.

    Do Departamento de Ciências Amorosas Aplicadas, especializado na questão de gênero: concluímos que a única possibilidade de encontro entre Orfeu e Eurídice seria a utilização do antídoto "nada de ideais por hoje". Bons resultados na maioria dos casos. Beijos mais-do-que-cinematográficos comprovam.

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  3. Concordo plenamente com a terceira hipótese da Camarada Empolgada!

    Talvez seja por se sentirem inseguros perante a figura feminina que os Orfeus, Mastroiannis, Scotties, Kris Kelvins e Delons da vida adotam a postura do Salvador. Necessidade de sentirem-se necessários.

    Tal reflexão me leva a um antigo texto do Fundamentalista no qual o próprio descrevia um encontro com uma garota que o intimidava justamente por estar no controle da situação. Ainda me lembro de algumas palavras "eu fiquei confuso e assustado como uma menininha. simplesmente não sabia o que fazer".

    A segunda hipótese é Lilith demais para o meu gosto. Ainda acredito que Eva foi a primeira, Lilith foi só o protótipo. O molde. Nada mais.

    Quanto à primeira hipótese: Lua?

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  4. concordo com esse complexo de orfeu...

    me fez lembrar da minha tese de filmes de terror: a mulher que transa durante o filme, e principalmente, GOSTA de sexo, morre SEMPRE. É a maneira de comprovar a minha outra tese: existe o machismo, ou a diferença entre os sexos, pois, a mulher que gosta de dar, é inferior ao homem, e a santa, pura e casta, é aprovada pelo homem, pois ela não tenta se igualar ao mesmo, no gosto pelo sexo. E por isso os homosexuais são tão odiados pelo machos heteros: eles estão se rebaixando ao "nível" de uma mulher, na questão do prazer...

    e é difícil mudar essa mentalidade, pois está incrustada no nosso dna primitivo...

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  5. discordo dessas teorias aí em cima. o que vocês tão fazendo é só dar pano pra manga pro sexismo. uns defendem aqui que o homem precisa salvar a mulher assim como a mulher precisa ser salva. será que precisa mesmo? outras (ou outros já que sei lá o sexo desse/s anônimo/s aí e cima) defendem que o a mulher não precisa ser salva e que é o homem que precisa se sentir útil. será que homem é tão inseguro assim? galera, abre o olho, homens e mulheres são apenas diferentes, não tem melhor ou pior. é um equilíbrio entre as diversidades e pronto. nada de gente que precisa ser salva nem de gente que precisa salvar. isso é tudo uma grande bobagem.

    agora, essa questão da mulher que gosta de sexo nos filmes de terror que falaram aí em cima, isso é porque os produtores de Hollywood são puritanos e falsos moralistas. a maioria dos americanos WASP são. e, pra eles, se tiver que sobreviver a mocinha, que a mocinha seja a jovem puritana, comportada e consciente de seus atos que não usa drogas e nem tem mais de um parceiro sexual porque isso sim é ser uma pessoa de bem.

    mas discordo que é difícil mudar. pensem na vida das mulheres a 50 anos atrás e comparem com agora. se a revolução cultural dos anos 60 não amenizou a condição das mulheres (e dos negros e dos latinos e das minorias etnicas em geral), então eu não sei o que foi. o que resta agora é fazer uma nova revolução sexual/cultural/etnica, etc.

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  6. discordo dessas teorias aí em cima. o que vocês tão fazendo é só dar pano pra manga pro sexismo. uns defendem aqui que o homem precisa salvar a mulher assim como a mulher precisa ser salva. será que precisa mesmo? outras (ou outros já que sei lá o sexo desse/s anônimo/s aí e cima) defendem que o a mulher não precisa ser salva e que é o homem que precisa se sentir útil. será que homem é tão inseguro assim? galera, abre o olho, homens e mulheres são apenas diferentes, não tem melhor ou pior. é um equilíbrio entre as diversidades e pronto. nada de gente que precisa ser salva nem de gente que precisa salvar. isso é tudo uma grande bobagem.

    agora, essa questão da mulher que gosta de sexo nos filmes de terror que falaram aí em cima, isso é porque os produtores de Hollywood são puritanos e falsos moralistas. a maioria dos americanos WASP são. e, pra eles, se tiver que sobreviver a mocinha, que a mocinha seja a jovem puritana, comportada e consciente de seus atos que não usa drogas e nem tem mais de um parceiro sexual porque isso sim é ser uma pessoa de bem.

    mas discordo que é difícil mudar. pensem na vida das mulheres a 50 anos atrás e comparem com agora. se a revolução cultural dos anos 60 não amenizou a condição das mulheres (e dos negros e dos latinos e das minorias etnicas em geral), então eu não sei o que foi. o que resta agora é fazer uma nova revolução sexual/cultural/etnica, etc.

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  7. Ah, que droga! O blogger fica rejeitando meu comentário. Esqueci tudo, humpft. Beijos para todos.

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  8. Pronto. Agora foi. Seguinte: o mito da Rapariga que vira Lua está no livro do Eliade. Adoooro.
    Sobre o debate: vai fundo, pessoal. Chamo o Borat ou a Jezebel para me ajudar? Ah, a Jezebel da linda Marcinha Bechara, claro. Aqui, ó: http://br.youtube.com/watch?v=0tbaz0XXNzs

    Nem preciso falar: não gosto de ismos q não sejam humorismos,mas mesmo estes últimos devem terminar com "de qualidade": é o caso do Fomos ao Cinema. Eita, tietagem.

    Sobre os filmes de terror: é vero, Let's. Mas no filme Os Sapatos Vermelhos lavamos a alma com sangue alheio ahahahahahahaha. Deusquimiperdoe.

    Beijocas, xuxus.

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  9. Papo brabo esse! Bateu uma saudade do Teteia! Só o Teteia pra salvar a semana, mano! O que foi aquela mina cantando, muito mau e porcamente por sinal tanto que num consegui entender poha nenhuma do que ela tava falndo, de dentro de uma vagina? Zoado!
    Ae, Progressista, se o problema é sabe quem colocar na edição da semana, coloca qualquer uma, só não tire o Teteia da gente! Serve a Cristina Ricci ou a Gwyneth Paltrwm pra ficar nas namoradas de superherois, vai!

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  10. "é isso aí mano", vâmu colocar a mulher melancia de tetéia!

    com certeza os anos 50 estão muito distantes de nós, anônimo 2.

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