segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Woody Allen, Godard e o American Pie

Existem filmes que literalmente nos chamam de burros. Na cara dura mesmo. Tipo, apontam o dedo e falam: "vai lá jão, quero ver você assistir o bagulho e não sair babando oligofrenicamente depois". Lógico que não ajuda nada quando você assiste o negócio nas altas horas da madrugada e um tanto quanto sonado. Funciona bem quando se vê um American Pie da vida, cujas piadas já vem com tradução simultânea e ajuste imediato para todos os tipos de mentes e estados físicos e psicológicos. Tipo naquele filme maluco do Roger Vadim, Barbarella, quando a Jane Fonda chegava no planeta e os maluquinhos falavam uma língua que ela não entendia, e ela simplesmente apertava um botão no pulso e pronto, lá iam eles falar um inglês perfeitíssimo, com direito a impecáveis sotaques britânicos em alguns casos (por essas e outras que considero o Vadim lado a lado com o mito Ed Wood, mas isso é outro papo). Nos American Pies da vida, quando o cara solta um pum (o que ocorre a cada cinco segundos no filme) você já sabe, por mais sono que tenha ou mais chumbado que esteja, que é hora de dar uma risada, só pra manter o status quo. Rá, rá, rá. Tipo, "eu não sou intelectualóide, e não me recusarei a rir desse pum, pois isso me faria descer ao nível daqueles imbecis que assistem festivais do Godard nos cines universitários da vida e ainda batem a cabeça de felicidade". Opa, eu citei o nome Godard na última sentença? Pronto, cheguei no assunto principal. Não, não é o Godard. Quer dizer, não majoritamente. É mais a idéia toda que existe por trás dos filmes dele. O negócio é que outro dia aí, assistia televisão em outra madrugada insone, quando ao passar por um canal de filmes Cult (um doce pra quem adivinhar qual) vejo que eles exibiam um filme de 1987, dirigido pelo Jean-Luc Godard e com o Woody Allen e a Molly Ringwald, musa-mor dos anos 80, ao menos para os teenagers espinhudos. Todas essas informações (tirando logicamente a descrição da Senhorita Ringwald, embora ache que seria muito engraçado se eles agregassem essas groselhas nos resumos, tipo quando fosse um filme do Tom Cruise, "elenco: Tom "Cientologia freak" Cruise) eu encontrei quando apertei a tecla que mostra o resumo dos programas em exibição, um pequeno luxo de muita valia, principalmente para quem num passado não muito distante tinha que enfiar bombril na antena para assistir o bagulho. Tempos modernos. Enfim, o filme chamava Rei Lear, obviamente calcado na peça do Shakeaspeare. Não me lembrava de tal película na carreira do Godard, nem que o Woody Allen estava envolvido (ele que odeia atuar em filmes de outros diretores) e muito menos que a Molly Ringwald estivesse no meio. Tamanha loucura nem chega perto do que era esse filme. Sem dúvida alguma, a coisa mais insana que eu já assisti em toda a minha vida. Tudo aquilo que falam de mal do Godard podia ser comprovado nesse exercício de agonia travestido de cinema. A tão achincalhada fase eighties do Jean-Luc.


Basicamente, o filme conta uma história passada num mundo no qual o acidente nuclear de Chernobyl (que tinha acontecido pouco tempo antes do filme ser feito) tinha tido efeitos quase apocalípticos, e toda a história da arte tinha sido perdida. Então um cidadão chamado William Shakespeare Quinto resolve tentar fazer algo para resgatar parte dessa história, e chegando num resort (?) acaba, apenas por presenciar os fatos lá ocorridos, lembrando de todos os diálogos da peça Rei Lear. Fatos esses que envolvem um chefe da Máfia e sua filha oportunamente chamada Cordelia (interpretada pela Molly Ringwald), um professor chamado Jean-Luc Godard (interpretado pelo próprio), que fica xerocando sua própria mão o filme todo (sem motivo aparente), quatro globins humanóides que ficam atormentando Cordelia, e um cavalheiro deveras fidalgo sem função alguma no filme e cuja namorada (interpretada pela Julie Delpy, tinha me esquecido dela) fica constantemente invisível. Sim. Invisível. Ai, o Shakespeare Quinto resolve fazer um filme com a peça, e manda o negócio para Nova Iorque, para um tal de Senhor Alien (agora sim, interpretado pelo Woody Allen) editar. A trama por si já seria o suficiente para mandar o Godard e todos os envolvidos para os melhores hospícios da Normandia. Mas a execução do negócio é que acaba dando aquela sensação de que a loucura é um troço subestimado. Os personagens jamais olham uns para os outros. Todos falam como se estivessem fazendo monólogos, discursos, não existem conversas propriamente ditas. Sempre olhando para o alto, para o lado, para o chão, para qualquer lugar que não a cara dos outros personagens. A câmera, como de praxe em diversos filmes do Godard, jamais se move. Inúmeras vezes durante o filme, mesmo quando personagens falavam alguma coisa, o áudio era interrompido por berros insanos de gaivotas voando na cena no momento. É, gaivotas. Umas duzentas vezes durante o filme. Não que fosse desagradável ver algum personagem que estivesse falando alguma bobagem sobre a contemporaneidade do Shakespeare sendo interrompido pelo barulho das gaivotas. Sem dúvida, foram os momentos mais agradáveis do filme.
Todos sabemos que o Woody Allen é um grande fã da nouvelle vague, e que deve ter sido uma honra para ele atuar num filme de um dos seus ídolos. Mas, cá entre nós, justamente o Woody Allen, que sempre demonstrou nos seus filmes, livros e rotinas de comédia uma maneira brilhante de falar de alta cultura com bom humor e sem cabecismos, participar de um troço insano desses, somente a idolatria para justificar. Já a Molly Ringwald, essa deve ter se achado a principal beneficiada com a empreitada. Afinal, na época ela vivia dando entrevistas dizendo-se cansada do mundinho do John Hughes, e querendo expandir seus horizontes de atuação para não ficar presa naquele universo adolescente. Perdeu, patricinha. Tanto fez que nunca mais se livrará do estigma. Godard nenhum foi capaz de trazer o antídoto para o doce mundo do senhor Hughes. Eu aguento esses negócios na boa, adoro brigar com filmes que tentam zoar com a minha cara, se bobear eu poderia até chamar essa película para a porrada, dar uns belos cascudos nela, quebrar o seu nariz e coisa e tal. Nada me atinge. E vamos lá, todos sabemos que o negócio do Godard eram os "conceitos". Os seus filmes depois de uma época viraram teses. Época essa que dura mais ou menos até os dias de hoje, precisamente. Enredo, personagens, diálogos, câmeras que, por Cristo, se movem durante o filme. Coisas que deixaram os filmes do Godard fazem uns bons trinta anos. Citei o American Pie no começo para exemplificar uma idéia. A de que filmes como esse e o Rei Lear do Godard são exercícios de cinema diametricamente opostos, um chamando o espectador de anta, mas tentando explicar tudo direitinho para que ele possa prestigiar o bagulho e trazer as sonhadas verdinhas depois, e o outro já usando a burrice do pobre espectador como pressuposição, nem se dando ao trabalho de tentar demonstrar coisa alguma. No meio desses dois extremos é que jazem as verdadeiras pérolas da sétima arte. O que hoje em dia significaria o quê, os filmes do Paul Thomas Anderson? Ué, o que o Adam Sandler tava fazendo naquele filme do maluquinho que ficava embriagado de amor então?

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