quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Godard e o Natal. O Natal e Godard. O Godard + o Natal. Silêncio

Um belo dia, em meados de 1964, Jean-Luc Godard acordou e resolveu que o Natal seria um tema interessante para um filme. O Natal das metáforas socialistas, segundo o francês. Não o Natal gordo e imundo dos yankees. Pensou Jean-Luc: "preciso fazer pelo Natal o que o Pasolini fez pela crucificação de Cristo. Tipo, ele tratou do fim, eu falo do começo, pelo menos do espírito que seguiu até os nossos dias, perdido nos perus dos yankees, minha idéia fixa favorita". Nessa altura, tinha Godard esquecido que o Pasolini era ateu. E que Cristo exercia igual fascínio nos dois por culpa do seu discurso gregário, quase uma antevisão dos ideais comunistas tão violentamente defendido pelos dois. Godard tinha esquecido dessas coisas. Mas como sempre foi um homem de câmeras paradas e idéias na cabeça, foi em frente. O filme se chamou "O Divertido Natal de Godard". Duas idéias definiam o mote do filme: uma, culpar os yankees pela degradação dos valores natalinos. Duas, imaginar Papai Noel como uma espécie de Marx moderno, tentando preservar suas ideologias e ao mesmo tempo tendo de faturar alguns fazendo propaganda. Colocou o Jean-Paul Belmondo como o bom velhinho, com uma bela pança postiça na barriga e um capuz vermelho cobrindo o rosto todo com quatro furos para os olhos, nariz e boca, ao invés do costumeiro gorro. Ao invés do personagem ser chamado no filme pela denominação francesa, Pere Noel, o filme todo ele é chamado de Santa Claus. Depois dos créditos, o filme abre com uma tomada externa de uma gigantesca fábrica com o logo da Coca-Cola, e uma legenda embaixo escrita "Atlanta, EUA". Em seguida, a câmera fixa-se atrás de uma cadeira na qual o Papai Noel está sentado, de frente para uma mesa, mas a visão do traseiro do velhinho nos impede de ver quem está sentado, já que a câmera não se move. Um estranho diálogo se segue, mais ou menos assim:

-Existe uma rejeição muito grande dos produtos americanos na França, estamos perdendo um ótimo mercado por bobeira. Por isso, queremos que você vá lá e faça aquela preza básica, distribua presentes e cocas a rodo para as crianças, que são o nosso alvo principal, já que elas convencem a família a seguir comprando o produto. E com a credibilidade da sua imagem, esperamos conseguir entrar nesse mercado. Sabe como os franceses são, adoram fingir que não gostam da gente, mas quando isso significa a perda de dólares, temos de tomar atitudes.
-Isso vai contra todos os meus valores, e contra todas minhas atribuições. Já tive que mudar a cor das minhas vestimentas e do meu saco de presentes para vermelho, e agora isso?
-Você deveria ter pensado nisso quando vendeu os direitos de exploração da sua marca para a gente por 100 anos. Agora, trate de se mexer e justificar os milhões depositados na sua conta na Finlândia. E pela última vez, as renas também precisam das roupas especiais com o nosso logo. Elas possuem muita visibilidade entre a criançada. Coloque também um nariz vermelho numa delas, e chame-a de Rudolph, nome de um dos criadores da fórmula da Coca. A nossa equipe de marketing garantiu que isso será um sucesso, vai rolar até revistinha em quadrinhos. Agora, se manda daqui e volte com belos números pra cá.
-Ok.

Um desolado papai Noel se levanta da cadeira e sai do recinto. Mesmo assim, não podemos ver quem estava na mesa falando com ele, por culpa das sombras que os envolviam.
Corte, e a câmera vai para uma praça, com uma legenda escrita "Paris" embaixo. Noel está sentado, vestido a caráter e bebendo uma garrafa do que se poderia dizer ser um vinho, pela coloração do líquido. Com o capuz na cara não podemos ver, mas é nítido, pelos seus gestos e sons, que ele está chorando. Segue-se meia hora do filme no qual tudo o que vemos é o pobre Noel vagando solitário pelos becos parisienses, tentando interagir com os locais, resultando em patéticas cenas de escárnio. Em certo momento, ele avista um grupo de moleques fumando cigarros atrás de latas de lixo. Resolve chegar perto deles, e ouvimos um diálogo entrecortado por imagens de coelhos sendo extirpados e procissões típicas da idade média, sempre com o áudio da conversa.

-Molecada, esse negócio de cigarro não está com nada. Vocês sabiam que um dos produtos usados na fórmula da Coca-Cola, como essa garrafa que tenho na mão, é a Cocaína?
-É? E daí?
-Daí que... vocês sabem... cigarro para a cocaína...
-Você é o Papai Noel?
-Sim, sou.
-E você não deveria estar dando presentes para a gente? Tipo, fingindo ser bonzinho, dando conselhos, reclamando da gente estar fumando, e tudo mais?
-Sim, eu deveria.

As crianças riem exageramante, e um dos guris dá um belo pontapé na canela do Noel, que caí no chão. As crianças saem correndo. Noel murmura:

-Está errado. Está tudo errado. Jesus castiga seu pobre servo que se vendeu para o diabo. O que faço? Pago a multa rescisória de 500 milhões de dólares?

Então, surge uma das renas na frente de Noel. Estranho, ele tinha estacionado o trenó num anexo na praça a qual o vimos chorando antes. Sem mover a boca, ouvimos então ela dizer para o bom e marketeiro velhinho:

-És um porco pronto para o abate, escravo do Capital.
-Só me faltava essa, uma rena falando comigo. Minha mente também se volta contra mim?
-Querias o fim da desigualdade. Querias a união dos povos. O que queres agora?
-Eu não tenho culpa! Falo da contradição que existia entre o meu discurso e a realidade. Todos aqueles duendes não trabalhavam de graça. E não tinha mais como ressarcir os desejos de todas as crianças do mundo e ao mesmo tempo pregar os benefícios da luta de classes! Que criem então duendes de puro altruísmo, capazes de trabalharem de sol a sol apenas pelo bem dos seus corações!
-Não conheces a propriedade de facto? Não conheces o poder do laço? Não conheces a pluralidade das regras? A invencível carga do medo? Os direitos de um não podem se sobrepor ao bem maior! Estamos falando de duendes aqui, certo? Anões? Melhor ainda.
-E o meu contrato? O que faço?
-És imune às leis empregatícias norte-americanas. Faça valer a tua luta através da imposição dos bons calotes.
-Falamos da Coca... sabe como é...
-Falamos da luta. É inevitável. Tu tens todas as cartas dos fedelhos deste mundo. És um símbolo. Coca quem?
-Falou, sua rena maluca. Você me convenceu. Me liberto das obrigações capitalistas. Volto a ser o senhor dos martelos e pás e o escambau. Mas vou manter a cor vermelha, mó stile. O que acha?
-Ótimo. Volto para o trenó, e nós nunca conversamos, para o bem dos fatos. Aponte para mim quando passarmos por Barmen, na velha Westphalia.
-Barmen? Não me diga que você...


A rena ficou muda. Noel tentou de todas as maneiras, mas ela não mais falava, tendo então voltado ao seu velho e natural estado irracional. Noel tentou entender se tinha mesmo tido uma conversa daquela ou se tinha sido uma alucinação. Mas era irreversível. A decisão era tomada. Depois, Noel pegou todas as garrafas do saco e as jogou violentamente no Rio Sena, numa bela tomada panorâmica. Corta, e na última cena, um trôpego Papai Noel é visto numa loja de departamentos, com a legenda "New York" embaixo no início da cena, com diversos homens de terno do lado (pelas expressões, podemos notar que se tratavam de advogados) e entretendo as crianças da loja, ouvindo seus pedidos numa fila e depois dando uma garrafinha de Coca de brinde para elas. Corte, e a última cena mostra uma rena morta, caída no meio de um campo de trigo, envolta por poças e poças de sangue, e Godard move a câmera contra ela num delicado zoom, parando somente quando a tela toda é tomada pelo seu olho. Então, uma legenda aparecia embaixo, com os seguintes dizeres: "mas já se tornara impossível distinguir quem era porco, quem era homem". Essa última legenda, que se constituía numa citação-plágio e que não fazia nenhum sentido dentro do filme, transformou-se numa grande fonte de problemas e explicações para Godard. Numa entrevista, um repórter foi fundo na questão:

-A citação Orweliana no final do filme não se constituía de um plágio forçado e desnecessário?
-Não. Se todos deveríamos ser iguais e ter direito às mesmas coisas, então qualquer obra também passa a ser de direito de todos. Eu posso reescrever um livro inteiro famoso, assinar o meu nome e ainda sim estaria certo. Não era plágio, era auto-afirmação.
-Ok. Esse raciocínio vale para você também? Se por acaso um Luc Besson da vida (a entrevista era recente) chegasse e dizesse que iria refilmar O Acossado sem pagar os devidos direitos, declarando estar exercendo uma "auto-afirmação" e colocando o Bruce Willis, a Gisele Bundchen e um monte de táxis envenenados no filme, você aceitaria isso livremente?
-Uhm... qual era o telefone do meu advogado mesmo?


Esse era o Natal para Godard, no final das contas.

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