quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Fomos ao Cinema ver Desejo e Reparação

Aviso: podem rolar spoilers aí embaixo. Por isso, antes de ler, vá para o cinema mais próximo e pague dez pilas para ver o filme. Não custa nada, ao invés de comprar a Men's Health ou a Júnior desse mês (uhm... sei), guarde o seu dinheiro para ver o filme. Evitamos constrangimentos desnecessários e malucos tentando me matar por terem achado detalhes importantes do filme antes de vê-lo. Se não viu e quiser ler mesmo assim, siga em frente. Talk to the hand!
Todo ano o Oscar tem entre seus filmes indicados na categoria de melhor película um típico drama inglês, sendo ele de época ou não. Deve ser o sotaque, provavelmente. Quem aí não se lembra de filmes classudos como Vestígios do Dia, Retorno a Howard's End e Razão e Sensibilidade, todos filmes que se esbaldaram com o clima interionano de época e a vida tediosa das classes superiores inglesas. O diretor Joe Wright lançou no ano passado um típico exemplar dos filmes dessa natureza, Orgulho e Preconceito, baseado no livro água com açucar da escritora Jane Austen. O filme era eficientíssimo no que se propunha, mas totalmente quadrado na sua forma e execução. Nada trazia de novo para um gênero naturalmente conservador. As velhas histórias envolvendo amores impossíveis entre jovens de classes diferentes (nome do álbum mais sensacional do Pulp, banda do bardo Jarvis Cocker, e que resume bem o espírito inglês desde... bem, desde sempre). Talvez Joe Wright tenha se dado conta de que algo estaria muito errado, parado. Era hora de ousar, beber da mesma fonte, porém mostrando truquezinhos novos para a patuléia parar de tirar um ronco. A coisa acabou saindo melhor do que a encomenda, felizmente. Wright pegou um intricado livro de seu compatriota Ian McEwan chamado Atonement (palavrinha que significa reparação) e foi para as cabeças. A história versa sobre duas irmãs de uma família abastada vivendo numa bela casa de campo inglesa em 1936, apenas três anos antes da Segunda Guerra. A mais jovem, Briony (interpretada nessa fase pela Saorsie Ronan), tenta montar uma peça para saudar a volta do seu irmão mais velho, e a mais velha, Cecilia (Keira Knightley is in the house) acaba de voltar da universidade e se vê lidando com seus sentimentos em relação ao filho da governanta da casa, Robbie (James McAvoy, o escocês gente boa do Último Rei da Escócia). Briony, embora bem mais jovem, nutre uma paixonite secreta por Robbie. O problema é que Briony, ainda jovem e arrogante, mostra-se, embora não abertamente, envergonhada por nutrir sentimentos por um rapaz fora de seu círculo social. Falamos então de um panorama propício para um bloqueio emocional, talvez? Que somado com puros sentimentos de ciúmes por ver Robbie e Cecilia juntos, teria feito Briony, em dois momentos cruciais do filme, interpretar equivocadamente momentos de interações entre Cecilia e Robbie, tomando o rapaz, gentilíssimo e educado, estupidamente como um predador sexual. O filme mostra as duas cenas primeiro com o ponto de vista da garota, para depois mostrar então os mesmíssimos acontecimentos com a perspectiva de Robbie e Cecilia, como eles realmente aconteceram.

Quando um crime ocorre na mansão, Briony se mostra tão condicionada que não pensa duas vezes em afirmar que viu Robbie cometê-lo, o que acaba desgraçando a vida do rapaz e sepultando as chances de um relacionamento entre ele e sua irmã. Toda essa primeira parte do filme transcorre de maneira lenta e contemplativa, refletindo inteligentemente o ritmo da vida de todos aqueles seres, nobres ou não, cujas existências passavam naturalmente por aquela gigante casa de campo. Depois da prisão de Robbie, o filme fecha um longo corte com um close-up no rosto de Briony, talvez tomando ciência pela primeira vez do alcance do seu ato. Então, o filme nos leva direto para a Segunda Guerra. Toda a calma da primeira parte é sepultada, e o caos e carnificina do conflito acabam refletindo a turbulência interna dos personagens, tendo de ao mesmo tempo sobreviver e lidar com as cicatrizes dos acontecimentos anteriores. Robbie se juntou ao exército inglês e aparece lutando na França, e Cecilia e Briony viraram enfermeiras, ainda que de hospitais diferentes. Cecilia tretou com a família por culpa de Robbie, e Briony, como dito pela própria irmã, virou enfermeira como forma de auto punição. Consumida pela culpa e pela angústia, que faz o seu semblante parecer sempre tenso e carregado (méritos totais para Romola Garai, intérprete de Briony nessa parte do filme), tudo o que quer é reparar (ATONEMENT! ATONEMENT!) a injustiça que cometeu e devolver Robbie e Cecilia aos braços um do outro. Mas a Guerra não entra na história por acaso. O conflito acaba exercendo influência decisiva sobre os acontecimentos, impedindo Briony de alcançar seu intento.

Então, voamos belos anos para frente, quando a lenda Vanessa Redgrave aparece já nos tempos atuais como Briony, quando sabemos que tudo o que aconteceu até então no filme tinha ocorrido na realidade e sendo escrito no livro que ela lançava, exceto uma única cena, inventada por Briony e que a permitiu, por pura licença poética, se desculpar com o casal pelos seus atos. A cena final mostra então Robbie e Cecilia felizes na casa de praia que Robbie carregava numa foto durante a Guerra, com todos os clichês permitidos para casais apaixonados. Um final que deixou muita gente nervosa, por mexer com a velha obrigação de se obter finais forçosamente felizes para satisfazer o público. Briony sabia bem que mesmo que não tivesse interferido, mesmo que deixasse os acontecimentos seguirem o seu ruma natural, não seria garantido ainda que a vida de Robbie e Cecilia seria um mar de rosas. Afinal, ele teria de ter ido para a Guerra de qualquer maneira, e a lógica das dinâmicas de relacionamento humanas poderia ter ditado também rumos não desejados para o romance dos dois. Os mesmos problemas teriam permanecido, as diferenças de classe dificilmente seriam acentuadas. A idéia do filme é mostrar que a reparação dada por Briony à história obedece mais a um desejo que todos sentimos e que ela, como espectadora privilegiada, teve a oportunidade de presenciar. Querer sempre que o amor verdadeiro seja aproveitado ao seu máximo, e que a sua luz pudesse inspirar todos em volta a seguir procurando pelo mesmo. O desejo do nome brasileiro se refere ao sentimento que levou Robbie e Cecilia a seguirem lutando até o fim, mesmo no meio do conflito mais brutal da história da humanidade. Soldados mostrados no filme cantando sobre esperanças de reencontrar seus entes amados, cantando sobre lugares melhores que os esperavam no fim daquela loucura e pelos quais valeria ficar em pé ainda. Como a casa de praia da foto de Robbie e da última cena do filme. A reparação existe no mundo dos nossos sonhos. Nos sonhos de Briony, que sentiu culpa por ter influido em algo que parecia ser tão certo, e que para matar a culpa dentro de si, deu o final mais perfeito possivel para essa história. Perfeição. A idéia que o filme e Joe Wright traíram as convenções e a inteligência de seu público é tão burra quanto as interpretações de Briony sobre o que presenciou ainda criança entre sua irmã e o criado da família. O filme exige maturidade, como exigiu de Briony quando comprou sua torturante cena de reparação e redenção. Um filme digno de estar ao lado da obra prima dos Irmãos Coen, indubitavelmente. E, caramba, não é inspirado no blog de uma típica menina peidorrenta yankee que gerou um filme mais sem graça que a fome. Parabéns ao senhor Joe Wright, e esperamos ansiosos pelos seus próximos esforços.

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