domingo, 3 de fevereiro de 2008

Fomos ao cinema ver Onde os fracos não têm vez

Nota: abaixo, não propriamente uma resenha, mas um esboço interpretativo de Onde os fracos não têm vez, que recomendo ser lido depois que se tenha visto o filme. Spoilers? Há também esse risco.

Anton Chigurh (Javier Bardem) é um assassino profissional, contratado para recuperar 2 milhões de dólares, dinheiro de tráfico de droga que o fazendeiro Llewelyn Moss (Josh Brolin) encontra ao se deparar, ao acaso, com o cenário onde jazem os corpos dos traficantes, que aparentemente se mataram no momento de entrega e pagamento da mercadoria. No encalço dos dois, coloca-se o xerife Ed Tom (Tommy Lee Jones).

Na última cena de Onde os fracos não têm vez (No country for old men, 2007), Ed Tom, aposentado, conta à sua esposa dois sonhos que teve, num dos quais seu pai aparece guiando-o através da escuridão.

O tema favorito dos irmãos Coen, o da Velha América, articula-se numa dimensão metafísica, na qual o conceito de absurdo é destacado como fator da desagregação que resultará no que a sociedade norte-americana é atualmente.

A tese em jogo é que a razão era suficiente num mundo onde subsistiam os princípios e valores tradicionais, no declínio dos quais aquela perde sua capacidade de compreender a realidade. Esse quadro desesperador é ilustrado pela figura de Ed Tom, cuja racionalidade é convertida num instrumento cego, quando voltado a Anton Chigurh, um assassino cujas motivações escapam a uma compreensão que insista em evocar aqueles valores.

Chigurh é um sinal dos tempos, submetendo-se a uma lógica que paradoxalmente supõe o acaso. É o mesmo que responder a quem pergunta qual o sentido de um mundo sem sentido. O assassino não é, pois, irracional; apenas absorve a irracionalidade como elemento constituinte da realidade.

E, por isso, trata-se de uma figura de transição (do mundo de Ed Tom para o presente), evidenciada nos momentos aterradores em que Chigurh interage com o homem comum, propondo-lhe questões a que este simplesmente tem se furtado desde que o mundo perdeu seu sentido. “Tudo está em jogo”, diz ele naquela que considero a cena mais assustadora do filme.

O fracasso de Ed Tom em compreender Chigurh e sua trajetória é que o impede de sequer alcançá-lo. São como mundos paralelos, que podem senão tangenciar-se. Chigurh existe no mundo de Ed Tom como a escuridão de seu sonho, ou seja, como aquilo a que a razão não tem acesso. No entanto, ele caminha noite adentro, iluminado por seu pai, isto é, pela tradição na qual se estriba sua lucidez.

A tragédia da racionalidade exemplificada pelo xerife é que ela é uma lâmpada apenas para ele. Sua aposentadoria aponta o ocaso da própria lei que, forjada pela tradição, quer julgar homens e crimes que “superaram” ou “ultrapassaram” a tradição.

Não olhe diretamente, ou ele irá atrás de você.

Olhar para Javier Bardem como Anton Chigurh é como olhar para Anthony Hopkins como o dr. Hannibal Lecter, em O silêncio dos inocentes. Não ficamos menos que perplexos, já que o que os sentidos sugerem – a saber, que estamos diante de um homem – tem por objeção o nosso próprio conhecimento precedente da vida.

Compreendendo como distintivo do homem a liberdade, quando é instado pela esposa de Llewelyn a que ele, Chigurh, é que faça a escolha, e não a moeda que carrega, responde: “A moeda e eu chegamos aqui da mesma maneira”. Assim, ao conceder a possibilidade de escolha num jogo de cara-e-coroa, quer ele demonstrar como a vontade nada é diante do acaso, tornando a distinção entre homens e coisas nula. Por isso, ele executa suas vítimas com uma pistola de ar comprimido, usada para abater gado, já que, como diz a velha canção da filosofia, o mesmo é o fim de homens e animais.

A última das três figuras arquetípicas de Onde os fracos não têm vez é Llewelyn Moss, cuja fragilidade e presunção fazem dele representante da perspectiva algo leviana e ingênua com que o homem comum leva a vida. Tentando escapar de Chigurh, senão com sua esperteza e astúcia, quer simplesmente deter o inevitável. Seu sucesso é o sucesso que todos nós podemos ter diante do que nos espera, diria o pregador, ensaiando um spoiler no meio da parábola.

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