quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Sartre e as cartas de Natal

Recentemente, foram descobertas cartas escritas pelo filósofo existencialista, humanista e marxista Jean-Paul Sartre. Elaboradas pouco antes da morte do escritor, em 1980, eram basicamente saudações natalinas para pessoas que foram importantes na sua vida, já mortas ou não. Podemos notar nos escritos os arrependimentos, dúvidas e considerações sobre eventos fundamentais no século XX. As cartas acabam funcionando como uma espécie de testamento intelectual do filósofo, usando palavras duras e incisivas para clamar pelo seu legado. O Fomos ao Cinema, através de um leve e necessário tráfico de influências dentro de renomadas instituições acadêmicas, teve acesso às últimas palavras do bardo francês, e publica aqui, com exclusividade.


Paris, França, 24 de Dezembro de 1979
Para: Simone de Beauvoir
Minha querida companheira (sei que adora quando me refiro a você dessa maneira). Preciso te dizer algo que ficou preso por muitos anos dentre meus pensamentos e ideologias. Algo que ficava lá no fundo, escondido entre meus latidos ontológicos e metafísicos. Conheço-te fazem bons 56 anos, tempo no qual apoiei todas as tuas causas e ideais. Que bom companheiro teria tido a mesma paciência? Digo, não quis parecer duro ou usar as palavras erradas, mas, convenhamos, havia uma latente histeriana freudiana na sua causa existencialista-feminista. Nunca enxerguei qualquer tipo de consistência teórica ou prática nas suas idéias. E aí, necessariamente, tenho de relacionar tais conclusões ao nosso longuíssismo, extenuante relacionamento afetivo. Aquela coisa de relacionamento moderno, aberto, franco, que tanto escandalizou os nossos iguais. Na minha juventude, quando queria que meus atos espelhassem minhas idéias, comprei todas as suas imposições. Tivemos os dois amantes, jamais experimentamos as bases de um relacionamento convencional, como quando o marido trabalha o dia inteiro para chegar de noite em casa com a mulher fazendo o jantar e os filhos pedindo dinheiro. Hoje, sinto que queria, verdadeiramente, ter experimentado uma espécie de vida como essa... Digo, eu saindo de dia para, usando um exemplo, ir trabalhar na minha revista de leitura, a Les Temps Modernes, e voltando depois com você lá, com o cheiro dos alimentos impregnando seus vestidos baratos, e os filhos rastejando no chão de tacos de madeira do nosso velho loft parisiense. Eu reclamando da sua comida, já que imagino que a razão pela qual você escolheu ser uma filósofa ativista tenha sido sua total ineficiência gastronômica. Somente eu teria o direito de procurar amantes, e você, maluca, procurando evidências das traições nos meus pertences, mas jamais exteriorizando esses sentimentos; quando você saísse de linha e começasse a me pressionar por quaisquer que fossem os motivos, eu quebrando copos na parede, saindo pra tomar umas e voltando, despejando minha cólera de macho bêbado sobre você; meu lado Serge Gainsbourg, roubado e carpado por você e suas baboseiras feministas. Fui eu um homem? Não. Fui eu um rato? Fui eu um capacho? A culpa é sua. Nunca terei coragem de entregar isso, mas pô, tô levão só de ter escrito. Tô de Briks!


Paris, 24 de Dezembro de 1979
Para: Albert Camus
Queria eu começar essa carta dizendo "meu caro companheiro de lutas". Bem que queria. Mas não foi esse o caso, não é? O que deu errado entre nós, meu caro Beto? Digo finalmente que cansei de defender e elogiar você às custas de pancadas da sua parte, e pancadas de outros depois da sua morte. Falei maravilhas do Estrangeiro, não? Agora, quer saber o que eu REALMENTE acho da sua obrinha "existencialista-trash"? Sem o peso das amenidades que vivíamos na minha fase pré-conversão ao marxismo? Simples: uma grande bobagem. O maluco com o sol na cara vira e mete um balacho no árabe lá, a troco de nada. Grande porcaria. E depois, cinquenta páginas com o personagem preso divagando groselhas a respeito da incompreensão e crueldade de julgamento dos homens. Lixo! Você viveu a sua vida para defender uma única idéia: a de que a melhor coisa que se pode fazer é ser um bundão. O mundo caindo na sua cabeça, e você lá, sentado, coçando as partes baixas e matando pobres árabes no meio do caminho. Eu pelo menos escolhi um lado, não? Não quis ficar no meio, sentado no muro babando. Não é uma ironia você ter morrido pelas mãos de terceiros, sendo passageiro no carro daquele seu amigo cachaceiro? Olha aí, que beleza. Meu ateísmo não me impede de dizer que foi uma bela obra de justiça divina. Ler aquele seu livrinho O Homem Revoltado me deixou profundamente triste. Por saber que um fino intelectual com você se deu ao trabalho de perder o seu precioso tempo falando falácias contra mim e os marxistas, ainda que metaforicamente, já que era incapaz de dar nome aos bois, como sempre. Quando os católicos me colocaram no index, ouvi de longe as suas risadas. Até do lado deles era capaz de ficar em nome da sua causa. O ser e o nada, esse era você, Camus. Vejo daqui as luzes de Natal iluminando a cidade luz. Mais um dos meus 73 natais. Com você foram apenas 47, não? A existência precede a essência.


Paris, 24 de Dezembro de 1979
Para: Fidel Castro
Agora sim: fala, companheiro! O sonho da igualdade vive, respirando o leve frescor das praias cubanas! Não esmoreça, meu caro amigo Castro. Eu sei o nome da libertação. O nome do salvador. Daquele que irá reacender as chamas do Marxismo, com tal voluptosidade que não restará outra alternativa ao mundo do capital senão se curvar perante o bem comum. O nome é Mikhail Gorbachev. Logo Chernenko baterá as botas, e o virtuoso Mikhail ascenderá. Com ele no comando da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, poderemos ver de novo a bandeira vermelha tremulando para conquistas heróicas. Você estará logicamente do lado do futuro premier nessa. Espero viver para ver tudo isso acontecer, mas acho difícil. Gorbachev! Mais uma vez: GORBACHEV!

Um comentário:

  1. gente, isso me lembrou que li O ser e o Nada na oitava série...

    depois de passar pela náusea, eu pensei: tadinho do sartre, cadê a a mãe dele?

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