Eu comprei a minha Veja, que é a revista de que eu mais gosto no mundo inteiro. E o dia em que eu compro a Veja é o mais feliz da semana inteira. Vou correndo pra casa lê-la e, depois, na faculdade, eu conto pros meus amigos as coisas legais que eu aprendi, e eles ficam muito impressionados por eu saber tantas coisas do mundo e das atualidades.
Mas aí chegou essa semana, e não foi assim, eu não fiquei feliz: eu fiquei triste. E eu fiz tudo do jeito que sempre faço. Só que dessa vez, quando eu fui ler a Veja, eu li que eu, sim, eu era um sanguessuga. É, um sanguessuga! E que eu era do mal, só porque eu estudo na USP.
Mas eu não sou do mal, eu sou do bem; eu quero ser bonzinho - por isso eu leio a Veja! Vou explicar pra vocês, que também são cidadãos de bem.
Pra começar, eu sou filisteu - já disse isso antes -, que nem vocês, quer dizer, quase que nem vocês. Porque, de vez em quando, porque eu tô na USP, fico meio poser e, aí, meio blasé e tudo. É chato, mas é só de vez em quando.
Mas, em nome da sociedade, me marginalizaram, a Veja e um gordinho da Bandeirantes (que não entra na história), num desses programas da tarde em dia de semana. Disseram que eu e os meus colegas filisteus e posers da USP não retornamos nada do que a sociedade, ou seja, vocês, cidadãos de bem, investe na gente. Eles falaram assim, como se, só porque eu entrei na USP, eu já não fosse mais que nem vocês, como se eu não fizesse mais parte da sociedade. Pior, disseram que eu sou filhinho-de-papai.
E eu não sou, não. A minha mãe é a dona Conceição, e o meu pai é o seu Oscar. A gente mora na Vila das Mercês, a gente é de classe média bem, bem baixa, não tem carro, e eu até pouco tempo atrás era estagiário e ganhava 500 paus por mês.
Além disso, a Veja, de que eu gosto tanto, disse que eu não mereço ensino superior de graça porque eu não vou ganhar o Nobel. O Nobel é o índice de produtividade de conhecimento da Veja. Segundo ela, se eu, ganhando 500 reais por mês (quando eu ganhava, porque agora eu estou desempregado), tiver de pagar 800 só de mensalidade da USP totalmente privatizada, aí, sim, eu vou ganhar o Nobel. Vou escrever um livro classudo e ganhar o Nobel.
A Veja é pragmática: ou a universidade produz, ou não vale nada, e a gente fecha ela. Só que, tipo, a Renascença não aconteceu assim, na marra. A Renascença é um negócio que demorou uns quinhentos anos, de muita enrolação, de muita gente sem fazer nada. Isso era humanismo. Mesmo antes da Renascença, ou melhor, pra que eclodisse algo como a Renascença, foi necessário muito humanismo, ou seja, gente coçando o saco o dia inteiro. Sem ócio, não há valores humanistas. O trabalho embrutece o homem, esse trabalho voltado à produção, ao mercado, como é aquele de que a Veja quer saber. Trabalho, nesse sentido, e conhecimento não casam. Eu não tô dizendo que, se patrocinarem a USP e deixarem assim, como está, daqui a uns quinhentos anos, virá a Renascença tupiniquim. Pode ser que venha. Mas o que eu estou dizendo é que tem de haver isso que é a USP, um lugar onde as pessoas vão aprender a ler Homero e Tucídides no grego, independentemente se vai dar pra vender isso no shopping.
Além do mais, parte da USP já é meio que privatizada. E é justamente a parte bem comportada, que nunca entra em greve, que não adere à greve, a parte boa da USP, de que a Veja gosta. E é justamente essa a parte que todo o mundo toma pra dizer que a USP é da elite, e que nóis, que é pobre, a gente não temo acesso.
Mas FEA, Direito, Medicina e Politécnica não são a USP; são uma parcela representativa, mas também muito específica da comunidade. Eu, por exemplo, que sou pobre e burro, eu tô na FFLCH, pra ser professor, que eu sou otário e devia de saber que o Serra não gosta de professor e, por isso, não vai gostar de mim. Nem ele, nem o Lula.
E meritocracia existe, sim, e funciona, como tudo nessa vida, em parte. Mesmo que digam que não; mesmo que haja cotas, mesmo que eles digam que lá na USP os pobre num entra porque não tivero chance. Eu, de novo, sou prova de que isso é mentira. Eu que estudei a vida inteira em escola pública; tudo bem que não trabalhei até os dezoito anos, mas isso, como a maioria dos jovens. Só que, em vez de assistir ao Zorra Total (quer dizer, não toda a semana, ou não inteiro, só um pedaço), eu, que era um chato, ia ler Proust, zzzzzzz, e ia escrever poema boboca sobre como eu era um adolescente boboca e incompreendido. Por isso, eu passei no vestibular e, por isso, não virei um injustiçado do pernicioso sistema socioeconômico vigente. Estudo num prédio inacabado desde a década de 1960, por falta de verbas, e tenho aulas de latim numa sala de 150 alunos, também por falta de verbas, mas não sou nenhum injustiçado.
Poxa, e, afinal de contas, eu também sou que nem o Lula. Talvez por isso, a Veja de repente não goste de mim, apesar de eu gostar tanto, tanto dela. Mas, por outro lado, vocês, cidadãos de bem, têm de gostar de mim. Eu também vim de baixo. O Lula veio de baixo e chegou à Presidência da República; eu, a USP. A USP é cheia de Lulas. Cidadãos de bem, vocês votaram no Lula, acreditaram nele, então, acreditem em mim também.
Apesar de que eu, eu mesmo, acho que ter partido é falta de caráter. Que postura política, boa mesmo, idônea e justa, é a de Thoreau, que dizia que "o melhor governo é o que absolutamente não governa". O Mainardi mesmo recomendou uma vez a leitura de Thoreau. Portanto, termino eu, recomendando também Thoreau, e, apesar de tudo, como Winston Smith amava o Grande Irmão, amando a Veja, porque ela zela por mim.
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